domingo, 12 de janeiro de 2014

Casualidades



Dia sim e outro também, parece que todo o dia Amarildes precisava ir ao supermercado. Sempre faltava ingrediente para que ela  concluísse com êxito o cardápio pensado, ou produto de limpeza específico para que pudesse clarear ou polir alguma peça incomum. Assim vinha sendo os seus primeiros meses de aposentadoria. Amarildes, feliz com o tempo livre, envolvia-se preferencialmente com a casa, apropriando-se do seu pequeno mundo e curtindo-o como há anos não conseguia fazer.

Numa dessas infinitas idas ao supermercado, percebeu a hesitação de um senhor diante de duas marcas de arroz. Amarildes, prática, já foi se enxerindo. “Pegue aquela marca ali, é bem melhor do que estas que o senhor tem às mãos.” “Ah, obrigado! Mas... é que aquele arroz não é branco...” “Pois eu lhe digo, o arroz parabolizado e o integral são tão saborosos quanto, e muito mais saudáveis. De qualquer forma, adiante um pouco, nesta mesma prateleira, o senhor irá ver que também tem o arroz branco desta marca que lhe indiquei. É bom e está com preço um pouco menor.” “Ah!” O homem que apenas olhava para as prateleiras e os pacotes nas mãos, virou-se para Amarildes, que lhe sorria. Assentiu discretamente com a cabeça. “Não há de quê, faça boas compras.” “Sim, sim, obrigado pela dica, ainda vou dar mais uma estudada sobre o arroz...”

Amarildes, no afã de ajudar, nem percebeu que se atravessou no momento introspectivo do homem, e que ele nem ficou tão satisfeito assim com o palpite. Saiu alegremente empurrando seu carrinho pelos amplos corredores do mercado, como se estivesse passeando no parque, pronta a assobiar.

Já estava quase concluindo suas compras quando viu o mesmo senhor pegando um congelado do freezer vertical. Ela passou por ele e não se aguentou: “Boa escolha, eu sempre levo estes camarões, são muito gostosos!” “É, mas será que conseguirei preparar? Talvez devesse comprar um congelado pronto.” “Mas é muito mais caro. E na internet tem inúmeras receitas boas e de fácil preparo.” “A senhora entende de cozinha?” “Nem tanto, eu sou, mesmo,  é  intrometida.” “Eu percebi.” Amarildes sorriu encabulada. “Não ligue, estou brincando.” “Eu lhe vi tão perdido na compra do arroz, quis ajudar. E agora, não resisti de comentar a coincidência...” O homem sorriu com o constrangimento de Amarildes. “Não quis deixá-la sem jeito, me perdoe. A senhora tem razão, vou procurar na internet alguma receita, estou precisando aprender.” O silêncio foi breve, logo Amarildes engatou uma primeira. “Tem um site no qual todas as receitas são muito simples, é fácil cozinhar pelo roteiro deles”. “Que bom saber, vou anotar.” “O nome é este mesmo: É fácil cozinhar. Será que precisa escrever?” “Sempre é bom. Ando com a cabeça tão atordoada que até a coisa mais simplória eu não sei se me garanto. Então, o nome do site...” “É fácil cozinhar.” “E o seu telefone?” “Como assim?” “Caso eu me atrapalhe... Ou, para lhe convidar a provar o camarão, se eu conseguir aprender a prepará-lo... Desculpa, estou sendo mal educado?” “Não, não está. É que...” “Perdão, a senhora é casada?” “Separada, mas...” “Então, aceite o meu cartão de visita. Se quiser, me ligue daqui uma semana para saber se consegui fazer o meu camarão. Quem sabe eu possa convidá-la a provar dos meus futuros dotes culinários?” “Obrigada. Faça boas compras, e boa sorte na cozinha.”

Com as bochechas vermelhas de vergonha, Amarildes saiu apressada do supermercado, sem nem conferir se havia concluído as compras. Caminhando rápida pela calçada com as sacolas nas mãos, já distante da loja e perto de casa,  suspirou enxugando o suor do rosto com o braço. “Onde já se viu? Olha só o vexame: parece que eu abordei a criatura, na maior cara de pau, como se quisesse levar uma cantada. Depois de velha? Dona Amarildes, a senhora já foi mais comportada!” O pior, é que Amarildes não reparou no homem, só percebeu que ele estava inseguro naquelas lidas. Seriam novas lidas? Mais tarde, pensando e puxando pela lembrança, identificava o homem como sendo um senhor grisalho mais velho que ela, bem apessoado, e. O que mais?

Passados muitos dias, talvez mais de vinte, Amarildes encontrou o cartão do homem no fundo da bolsa, no meio de um monte de bugigangas, notas e papeis sem importância. Vacilou. Amassou-o e jogou no lixo. Depois de minutos retirou-o do lixo e leu o nome do cidadão. “Que ridícula! Estás querendo, mesmo, ligar para o homem, Amarildes?” Ecoou a voz da censura. “E por que não? O que há de errado?” Mais uma vez a voz condenatória da censura falou: “Uma senhora da tua idade? O que este homem vai pensar? Que tu és uma mulher vulgar, oferecida, desesperada?” E a voz do contraponto falou mais alto: “Eu, desesperada? Da onde? Vou ligar sim, as pessoas podem ser amigas. E a amizade surge justo nos momentos mais inesperados. Essas são as coisas boas da vida! Vou ligar, sim.”

- Senhor Roberto, aqui é Amarildes, a senhora intrometida que palpitou nas suas compras do supermercado de algumas semanas atrás...

- Que bom que a senhora ligou, já estava desistindo de esperar pelo seu telefonema. Mas a esperança ainda reside nesta casa. Fiquei contente.

- O senhor conseguiu fazer os camarões, gostou do arroz?

- Passei a maior trabalheira para acertar os camarões. Na primeira vez ficaram duros e salgados, ruins. Na segunda vez, troquei a receita, e ficaram pior ainda. Na terceira vez chamei uma das minhas filhas para cozinhar comigo. Na quarta, eu fiz a mesma receita que a filha ensinou, e aí ficou mais ou menos, já foi possível sentir algum prazer ao comer os camarões. Na quinta vez...

- Nossa, o senhor só comeu camarão nestes dias todos?

Ambos riram do gracejo.

- Pois então, dona Amarilis...

              - Amarildes.

              - Ah, sim, Amarilis é a da novela. Pois então, dona Amarildes, eu não consigo mais comer camarão. Estou ficando intoxicado. Enquanto eu aguardava a sua ligação fiquei me preparando para dar uma boa notícia. Acho que queria impressionar a senhora. Porém, descobri que necessito de aulas de culinária; só com as receitas eu não dou conta, sou muito atrapalhado na cozinha. Mas já estou procurando um curso para homens. Enquanto isso, a senhora aceita o convite para almoçar ou jantar comigo, em algum restaurante de carnes?

               E assim foi. Marcaram e desmarcaram e remarcaram, até que saiu a tratada janta. Amarildes, mesmo sem pretensão alguma, caprichou no visual. A auto estima pediu e agradeceu.  Conforme desejo dela, ficaram de se encontrar no próprio restaurante. Ela foi britanicamente pontual. Menos de cinco minutos depois ele apareceu, todo bonitão, nem parecia tão velho quanto havia registrado na memória. Amarildes, logo muito falante, descontraiu o encontro tagarelando pelos cotovelos, enquanto ele a escutava calmo e em sorriso.

              Mesmo distraída, Amarildes percebeu que havia uma mesa com muitas pessoas, em burburinho, a olharem insistentemente para eles.  Antes que a situação gerasse mal estar, ela sussurrou para que Roberto  olhasse discretamente naquela direção. Os olhos dele, fixos em Amarildes, brilharam instantaneamente, e o sorriso se escancarou:

              - Não te preocupes, eu já imaginava que isso poderia acontecer, devem ser as minhas filhas, e talvez algum dos genros também. Certamente eles vieram conferir o nosso encontro. As meninas estão muito felizes, pois hoje é a primeira vez, desde que enviuvei, que saio com uma mulher. 

               Ele olhou na direção informada e cumprimentou as pessoas daquela mesa com um gesto de cabeça. Amarildes congelou.  Desesperada para se jogar debaixo da mesa, ainda tentou esboçar um sorriso e acenou timidamente aos seus expectadores.  

 

 

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

FRASES SOLTAS DE SENTIMENTOS LIVRES




·        Ainda que os fatos pareçam seguir um encadeamento minimamente lógico, eu sempre me surpreendo diante dos novos acontecimentos.


·        O relógio corre e eu corro atrás dele. Cada qual corre a cumprir com os seus desígnios, ambos exprimidos por limites e restrições do tempo.


·         Tudo muda, eu mudei. Quem eu sou, nem mais eu sei.


·        Uma simples e estática fotografia de momento chacoalha com as lembranças de um tempo, e reedita emoções atemporais num coração repleto de fantasias.


·        O café retinto e amargo, pelando, descia lento pela garganta com vistas a sacudir o corpo. Ao passo que as lembranças, feito sonho doce, desfilavam ágeis na memória enternecendo a vida e acalmando as pressas.


·        Na hora certa, diante dos fogos de artifício enfeitando o céu e explodindo em alegrias, levantei minha taça de espumante à altura dos olhos (enquanto apenas eu podia ouvir a minha voz) e brindei a ti.


·        No espelho admiro mais uma marca do tempo que se desenha branda dividindo a pele em dois lados. Como um veio cristalino que abre caminho para deslizar vida, minhas serenas rugas contam da vida passageira que expõe no rosto o tempo fruído.


·        Os fatos são como são, e os relatos dizem como cada um viu o fato. Mas eu juro que o fato foi como eu o vi e relatei.


·        Ao apagar das luzes os olhos se acenderam e procuraram a vida que se despedia. A festa acabara: não mais se tocavam valsas nem se encontravam os pares. Restava aos olhos, apenas, localizar a paz amiga e com ela partir rumo ao seu destino. Porém, a inconformidade apareceu e prevaleceu - os olhos ainda queriam valsar com a vida. E, no lusco-fusco, uma grande briga começou...



·        Entre lágrimas e riso irônico, indignado, ele ainda bradou: "Oh mundo cruel, cadê o meu destino? Aqueles safados já desviaram o rumo da educação e da saúde nas tramoias com o dinheiro público; já roubaram o futuro de milhões de trabalhadores honestos com suas politicagens; agora, é só o que me falta, eles sumirem  com o meu destino, justo eu que sou tão apaixonado pela companheira vida. Eu quero a minha companheira comigo, e isto é uma ordem!" No instante seguinte, a sua voz bruscamente se calou. Diante da veemente provocação, o destino se fez presente e mostrou   quem é que manda  -  trouxe  nova  companheira  que o levou junto com ela. E, sobre aqueles safados? Essa é uma outra história, uma longa história...