Era início da tarde de um sábado úmido e frio. O inverno vinha castigando a cidade nas últimas semanas. Flora estava encarangada em casa tristonha e só, sem nada de interessante a ocupar ações nem ideias. O filho havia saído desde sexta-feira para atividade esportiva e retornaria apenas no domingo. O marido havia deixado de ser marido e já ia longe.
Arrastando o chinelo de um lado ao outro, deitando no sofá e vendo um pouco de televisão, beliscando uma coisinha aqui e comendo outra bobagem ali independente do apetite, o dia prometia ser enfadonho. Em meio ao marasmo das horas o telefone tocou: um convite; um antigo colega. Tudo estranho como o dia.
Sem que Flora entendesse a razão, pois eram mais conhecidos do que amigos, Hélio a convidava para assistir uma palestra sobre tema complicadíssimo de psiquiatria, e desinteressante a uma homeopata. Seria ministrado em um dos agradáveis salões do centro de eventos do Hotel Plaza São Rafael. O melhor do convite era o jantar oferecido pelo laboratório de medicamentos logo após a palestra.
Apenas nos segundos da rápida conversa ao telefone, Flora se acendeu e aceitou o convite. Arrependeu-se em seguida de ter aceitado, mas... Foi.
Até o último instante ainda ficou a decidir, pendendo ora para ir à palestra ora para não. Hélio havia dito que as atividades iniciariam pelas 19h. Já eram quase 18h. Flora desanimada e com receio de desistir, sem banho sem produção sem alegria, vestiu uma bota, agarrou mais um casaco, puxou a bolsa e saiu ligeirinha.
Era cedo, porém escurecia rápido. Soprava um vento assobiador gelado, e o centro da cidade estava praticamente deserto. Flora estacionou o carro bem em frente ao hotel. Entrou. Procurou o salão da palestra; nele havia bem poucas pessoas. Flora, então, resolveu caminhar entre os corredores e as salas de estar para gastar o tempo. Inesperadamente viu-se refletida em um grande espelho. “Ai, que vergonha!”
Flora nem havia reparado, mas ela estava esquisita, nada combinando com nada. Os cabelos puxados para trás e presos como ela andava em casa, não estavam de acordo com o ambiente. O rosto pálido sem qualquer pintura a deixava sem graça, embora ainda pudesse colocar um batonzinho, pois este ela certamente encontraria dentro da bolsa. As botas pretas não comprometiam, mas a saia junto ao colete sobre o blusão, o grande casaco nas mãos, e o comprido cachecol enrolado no pescoço não se harmonizavam. Flora estava ensacada em roupas de lã da cabeça aos pés, em vários tons de bege e marrom. E na saia havia pequenos detalhes em preto. Mas, o pior de tudo era a bolsa!
A bolsa gritava o desacordo. Ela era grande, bem grande e em tecido plástico brilhoso. Ela tinha motivos florais num imenso colorido vivo, no qual predominavam o rosa e o amarelo e o verde limão sobre um fundo preto. A bolsa era escandalosa. "Por que pegou esta bolsa?"
Flora poderia chorar e sair correndo, mas resolveu empinar o nariz e ignorar seu visual. O frio havia ficado do lado de fora do hotel. A ação da forte calefação passou a provocar calor. Assim, ela iniciou um discreto desvestir. Colocou o casaco, o colete, e o cachecol dentro da bolsa. As luvas já haviam sido guardadas quando chegou. Flora sorriu em pensamento. Pelo menos a bolsa estava servindo para alguma coisa, pois parecia um grande baú sem fundo. Com menos peças de roupas sentiu-se menos mal vestida para a ocasião.
Antes de iniciar a palestra, ganhou pasta com folhas e caneta que foram colocados direto dentro da bolsa. Ao final do evento cultural, enquanto os organizadores encaminhavam os convidados ao salão do jantar, recebeu de brinde do laboratório um relógio, assim como todos os outros participantes, que automaticamente guardou na bolsa.
Durante o pequeno percurso encontrou Hélio e outros conhecidos, mas perdeu-se deles todos na hora de sentar à mesa. As mesas eram redondas e grandes, cobertas por alvas toalhas quase até o chão, e permitiam a ocupação por umas dez pessoas. O salão estava cheio de mesas e de gente. Num lado da sala havia dois bufês maravilhosos: um quente e salgado, outro frio e doce.
Flora sentou-se entre desconhecidos e achou bom não precisar interagir com ninguém. Serviu-se gulosamente. O jantar estava esplêndido; exagerada e desnecessariamente repetiu os pratos quentes. Flora estava se divertindo, nem mais se lembrou das roupas, do cabelo e da superbolsa. Comia com gosto, e enquanto o fazia, admirava a decoração, olhava para os colegas buscando reconhecer mais alguém, e se inquietava diante das sedutoras opções do bufê mais bonito e apetitoso de doces que já vira. Nunca mais Flora o esqueceu, nunca! Ela saliva até hoje quando se lembra daquela mesa fantástica, farta de doces que não chegou a provar.
Tudo ia bem quando, de repente, algo original passou acontecer. Os ocupantes de todas as mesas, em câmara lenta - pelo menos assim pareceu aos olhos de Flora -, puseram a abaixar o corpo a enfiá-lo em baixo da mesa. Flora pensou: “Isso é coisa de psiquiatra? Onde foi que perdi a voz de comando? Que brincadeira ridícula eles estão inventando? Tudo adulto aqui, e eles bobeando feito criança?”
Porém, instintivamente Flora fez o mesmo movimento que viu os colegas realizarem. Sentada no chão, espremida com os outros no pequeno espaço para se resguardar, Flora começou a identificar os acontecimentos. Havia um homem armado ao fundo da sala com uma refém. Do lado oposto, na porta de entrada estavam policiais. Um gritava de cá e ameaçava a vida da refém, outros gritavam de lá, ameaçando ou tentando negociar, Flora não entendia bem. Mas, ficou com medo. Nervosa pediu para segurar a mão de um homem que estava próximo, temia morrer. Uma mulher olhou para Flora com descaso e disse que ninguém ia morrer. Flora soltou a mão do homem. Que situação! Seria a mulher companheira daquele homem? A tensão era grande. Tudo estava confuso.
Rastejando-se um a um pelo espesso tapete, foram todos deslizando de mesa em mesa e fugindo por brechas entre as paredes móveis do salão. Flora inseriu-se ao grupo que saía pela parte de trás da sala. Entrando em outro ambiente, Flora se pôs de pé e buscou a saída, seguindo silenciosa outras pessoas. Percorreu corredores, cruzou por salas e chegou ao grande espaço da recepção do hotel. Ficou impressionada, mas prosseguiu. Em frente ao comprido balcão de informações, sobre os tapetes vermelhos e abaixo dos belíssimos lustres de mil e uma lâmpadas, havia um carro de táxi de portas abertas, farol acesso, todo amassado e rodeado de estilhaços de vidro. As portas do hotel totalmente arrebentadas, e diante delas um forte policiamento, viaturas e cães da polícia. A rua estava bloqueada, e o carrinho de Flora - preso.
Tonta, perdida, apavorada, Flora caminhava devagar. Sozinha, sem dispor da sua condução, ela simplesmente ia no meio da grande confusão. Na esquina encontrou um grupo de pessoas, e nele avistou o palestrante. Pobre do homem, em manga de camisa, tiritava de frio. Flora Inseriu-se ao grupo que procurava entender alguma coisa, e ofereceu um agasalho ao palestrante que tentou recusar, mas timidamente acabou aceitando. Neste momento Flora deu-se conta de que a bolsa estava ali a tiracolo, sem que ela explicasse como a danada saiu do encosto da cadeira para baixo da mesa e depois se arrastou pelo chão, sempre junto dela.
O palestrante estava hospedado no hotel, e embarcaria de retorno ao seu estado em voo cedo da manhã. Como devolveria o agasalho de Flora? Trocaram números de telefone. Com muito frio ele aceitou além do colete o casaco e prometeu fazer contato para a devolução. Hélio se reuniu ao grupo e sugeriu à Flora pegarem um táxi mais adiante. Ele a deixou na casa de seus pais; Flora estava muito assustada.
Nos dias seguintes a vida voltou ao normal, apenas com um detalhe: divertidamente Flora recebia todos os dias ligações telefônicas do palestrante. Conversavam e conversavam mais um pouco, e combinavam um encontro, naturalmente para a entrega dos agasalhos. A situação prometia! Será que iria acabar em namoro? Inusitado.
Pouco mais de mês, romanticamente ele veio visitá-la, passar um fim de semana em Porto Alegre para agradecer pessoalmente a bondade, entregar os agasalhos, e conferir a história insinuada.
No aeroporto ao se encontrarem, Flora olhou curiosa nos olhos do homem, e... Achou-o arrogante. Ele a olhou fundo nos olhos, e... Sabe lá o que percebeu, mas a antipatia foi rápida e mútua, contrária ao sentimento desejado imaginado a partir dos diálogos por telefone. O fim de semana foi arranhado e desagradável, as horas encalhavam o tempo todo, custavam a passar. Na despedida, aliviados com o fim de todas as aventuras, ele falou o que faltava: “Não a vi usando sua bonita bolsa neste fim da semana. Foi ela que me salvou, não?” E foi o fim. Enfim! Nunca mais quiseram se ver. Depois, Flora só usou a bolsa para ir à feira.
Ah, o que aconteceu no hotel no dia da palestra? Um bandido perigoso conhecido por Melara fugiu da penitenciária com comparsas e reféns e, depois de rodar pela cidade dentro de um táxi, adentraram no Hotel São Rafael com carro e tudo, e se embrenharam lá por dentro. Um deles, o fugitivo que entrou no salão do jantar, foi o responsável por Flora sonhar até hoje com o bufê de sobremesas. E, talvez, pela saliência daquela bolsa, de comportamento tão vulgar, junto ao palestrante.