A
campainha tocou, era da floricultura: “flores para D. Ana”. Numa fração de
segundo ela pensou: “não é aniversário, nem data especial, não, não são para
mim”. Pelo interfone indagou:
-
Senhor, para quem são as flores, mesmo?
-
D. Ana de Miranda. Posso subir ou alguém vem buscar?
-
Estou descendo, me aguarde.
Intrigada
desceu as escadas, do terceiro andar ao térreo, procurando formas de adivinhar
a origem e o motivo daquele regalo inesperado. Rápido o pensamento foi, voltou,
mergulhou e voou. Nada. Era um dia qualquer, e ela não identificou razão para
homenagem. Chegou diante do entregador, pegou as flores e foi direto ao cartão.
Embrenhado
nas flores estava um pequeno envelope róseo com o seu nome escrito à mão. As letras levemente
irregulares sugeriam ser da própria florista. Abriu o envelope e o cartão
estava completamente em branco.
-
Moço, vem cá, só um instante. O cartão está em branco. Será que não houve algum
engano, ou esquecimento, ou.
-
Não senhora, é isso mesmo. Mas se quiser alguma outra informação, ligue para a
floricultura, quem sabe?
-
Sim, sim, obrigada.
Olhou
para as flores com encantamento: elas eram lindas e ricamente coloridas, e exalavam
uma fragrância levemente cítrica e adocicada pelo ar. Sorriu. O buque era para
ela, não importava quem lhe enviava; se a pessoa que oferecia não quis se
identificar, ficaria sem saber. O fato é que ganhara flores, e isso lhe bastava.
Satisfazia.
Escolheu
um vaso de cristal grande e imergiu o jardim todo nele. Estudou um lugar
iluminado, visível e próximo do computador. Queria desfrutar do prazer que as
flores inspiravam enquanto trabalhava. Sentou-se novamente diante da tela para
seguir nas traduções e, antes de dar partida aos dedos ágeis sobre o teclado,
ainda admirou por longos segundos o seu novo cenário. Aspirou fundo o aroma e
se concentrou, o dia prometia ser longo.
A
noite chegou de mansinho e Ana nem se deu conta. Foi quando a fome bateu nas
paredes do estômago é que ela percebeu o passar das horas. Estava feliz. Havia
conseguido atingir a meta estipulada, e com leveza. O trabalho fluiu na
companhia das flores. Tão belas e cheirosas!
Jantou,
fechou o apartamento, e ia se preparando para dormir, quando o telefone tocou. Embora não fosse nem 21 horas, já
era tarde para os padrões de Ana. Quem poderia ser ao telefone naquele horário?
-
Parabéns a você, nesta data querida, muitas felicidades...
A
cantoria seguiu e se repetiu mais uma vez. Do outro lado a voz era conhecida,
masculina, "hum, mas de quem?" cogitou; ainda mais, errando grotescamente a data do seu aniversário?
Tudo estranho.
- Ana, Ana, Ana. Não estas entendendo nada,
não é? Eu sei, eu sei. É que eu esqueci quando fazes aniversário, e andava
lembrando muito de ti, por vários dias consecutivos tu passeavas por todas as
brechas do meu pensamento. Aí resolvi te fazer uma surpresa. Gostaste das
flores?
-
João???
Uma
gargalhada gostosa ecoou do outro lado.
-
Estás na Bélgica??
-
Mas volto até o final do ano, eles não me querem mais por aqui. Termino minha
tese de bombacha e comendo churrasco no sítio da tia Suzi, perto dos amigos. Que
tal já marcarmos um encontro?
-
Para daqui quatro meses?? João!! Continuas o mesmo... Adorei as flores, elas trouxeram
uma paz maravilhosa, alegraram meu espírito. Até trabalhei melhor, as traduções
renderam como raras vezes. Obrigada. Só podia ser tu...
-
Jura? Lembra-te das palavras mágicas?
-
João, seu velho carente, ‘eu te amo’.
-
Quer casar comigo?
-
Olha... Não insiste que eu considero a proposta.
-
Aninha, isso quer dizer um... ‘Sim’?
-
Seu destrambelhado. Quero mais flores para poder dizer algum sim para ti.
-
Uma vez por semana? Ah, Ana, se não for contigo, não há de ser com mais
ninguém.
-
Volta e veremos se manténs o pedido, seu tratante. Sabes quanto tempo não
mandas notícias?
-
Aninha, liguei para te desejar feliz aniversário, feliz 'mesiversário', feliz
'diaversário'. Mereces felicidade sempre. Por que eu teria que esperar, e
acertar, o dia da convenção? Todos os dias devem ser felizes, não achas? Gostou
da surpresa?
-
Meu querido de vida inteira, eu adorei. Concentra-te por aí, conclui o que
precisas, e vem que estamos te esperando.
-
Estamos??
-
Vem João, eu estou te esperando. E nas tuas folguinhas, podes continuar mandando
flores, viu?
-
Eu também te amo, Ana. Beijão. Ah, e um abraço bem apertado de saudade. Estou
chegando!
A
ligação foi encerrada, mas os sorrisos ficaram enfeitando os rostos lá e cá. Sempre
foram essas pequenas coisas, inusitadas, que fizeram a vida valer a pena, pensou Ana.