terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Intenção maior ao novo ano

 
Desejo abrir as portas do coração que estavam fechadas trancadas e lacradas. Desejo abrir portas e janelas do coração, arejar o ser, e me deixar solta para apaixonar. Simples e despretensiosamente.

Eu não mais queria, mas voltei a querer. Sim, ambiciono me apaixonar, mesmo que falte um alguém a se apaixonar por mim. Estou saudosa da sensação de enlevo de corpo e alma que me fazia sorrir em verso, trilhar por caminhos inversos, além de me encontrar, volta e meia, brincando pelo reverso. Emoções minhas que dizem de mim.

O tempo tem me ensinado, e nele, a muitas custas, tenho aprendido. Quero mais uma chance de viver na intensidade excedente, mergulhar em loucas fantasias e confusas verdades. Não morrerei de tanto amar, isso  já descobri. Mas sangrarei em hemorragia, apunhalada pela covardia, se não me entregar ao sentimento que dança e pula e saracoteia dentro de mim, como criança pedinchando.  

Antes da virada dos números do ano, já virei algumas páginas do livro da vida. Deixei medos e inseguranças paralisantes esmagadas entre folhas, atrás. Ainda sinto meus passos em falso, percebo as imperfeições do percurso, temo as sombras do trajeto, mas, acima de tudo, vejo vida piscando à frente. E, assim, sigo rastreando mudanças aos novos capítulos desta, quiçá, minha longa história.

Mais que intenções, serão realizações! Vou abrir  portas e janelas do coração - há meses ou anos  emperradas, sabe-se lá. Depois vou desnudar-me das mágoas acumuladas a mal vestir-me, e, mais uma vez, jogar-me de ponta cabeça às insanidades da paixão. Ainda que seja com cabeça quebrada, sei que serei mais feliz em franca ebulição do que acorrentada à mesmice do nada pelo pavor a tudo que, talvez, em algo possa me ferir.

         Com muita paixão, seja bem vindo 2014!

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

O envelhecimento feminino


Outro dia li um texto sobre o envelhecimento feminino que, confesso, fiquei bem incomodada. Com a intenção de retratar a realidade, o que percebi foi o enaltecimento do preconceito e o fortalecimento da postura vitimada da mulher.

Verdade é que, lamentavelmente, o preconceito existe e não é privilégio da mulher ou da velhice. O preconceito vigora, e com bastante força, em relação à cor da pele, à pobreza, às crenças religiosas, à doença, ao comportamento sexual, ao peso, e por aí vai. Sim, há discriminação do diferente em nossa sociedade, existe maltrato diante das fragilidades. Cada vez mais enfrentamos problemas como o “bulling” nas escolas e o assédio moral no trabalho.  A segregação está em toda a parte. Precisamos acirrar nossas inconformidades e trabalhar com mais afinco na busca do respeito e da integração do sujeito, quem quer que seja ele.

Não é fácil ser diferente ou viver o novo, mas não creio que culpar a sociedade e chorar as pitangas minimize nossos problemas. Até pelo contrário. É confortável projetar nossas imperfeições e apenas identificá-las nos outros. A sociedade também somos nós. Se não estamos gostando, percebemos que a injustiça está prevalecendo, então, arregacemos as mangas e vamos à luta. Vamos nos despir dos nossos próprios preconceitos e bradar as novas verdades, vamos transpor os obstáculos e trilhar novos caminhos. Precisamos mudar para alcançar mudanças na sociedade. Ela não mudará sozinha, ou porque nos queixamos dela.

Envelhecer aos padrões atuais é novo, temos dúvidas e medos, além do coração cheio de velhos preconceitos - por exemplo, quanto à produtividade e à estética. Desde o século passado a mulher tem lutado e conquistado reconhecimento. Por trôpegos passos a velhice tem conseguido vencer distâncias e obter maior consideração, principalmente por parte das ciências, e, por via indireta, da sociedade também. Mesmo assim, ainda precisamos fazer muito mais - unamos esforços e nos façamos fortes. A luta deve continuar.

É uma dádiva ser mulher e envelhecer com saúde física e mental, jamais uma decepção. Nós mulheres, ao envelhecer, temos que enfrentar estereótipos, renovar concepções, desafiar o estabelecido. E nisso existe uma bela perspectiva de continuar crescendo e se desenvolvendo. A mulher velha não é feia, ela possui uma beleza diferente que nem todos conseguem enxergar, pois é o novo que se apresenta aos olhos dos conservadores. O desejo sexual não morre na mulher nem no homem porque mudanças se processaram, porém diante das próprias inseguranças há quem não saiba como se comportar, há quem desaprenda como brincar. O sobrepeso na mulher velha não é um problema da velhice, é uma questão importante de saúde. A depressão, quando aparece, sinaliza doença ou sintoma, e deve ser tratada em qualquer idade, independente do gênero.

Assim sendo, afirmo que me sinto muito gratificada em ser mulher e estar no processo de envelhecimento na nossa sociedade, apesar das dificuldades e desafios que preciso encarar. Serão nossas atitudes e valentia diante dos enfrentamentos  que promoverão a diferença. E que fique claro, ninguém fará por nós o que nós mesmos não formos capazes de fazer em defesa de nossa condição, situação e possibilidades.

 

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

DOCE


Pensei num bombom.

Desejei um bombom.

Mas qual nada,

a recordação me trouxe o beijo.

Ah, que doçura de beijo.

Mais cremoso que o melhor chocolate belga.

Mais inebriante do que o melhor

dos melhores licores portugueses.

O beijo sapecado uma, duas, três,

numa última vez,

entregou-se com maciez aos meus lábios,

devassando ternamente minhas censuras

procurando meus segredos.

Irresistível beijo que ousou sem atrevimento

buscar meus sentimentos.


O beijo se perdeu do tempo e ficou.

Perdeu-se da formalidade e despiu-se.

E sem reservas acarinhou o rosto,

deslizou sobre a pele,

e alcançou a alma. Ah, que beijo.

Tão inesperado

tão afogueado fazendo declaração.

Sugando aprovação,

seduzindo cumplicidade,

provocando os caprichos da imaginação.

Beijo menino brincou e brincou

e adormeceu em mim. Coladinho em mim.

Meigo, doce. Inesquecível.

 

 

 

domingo, 24 de novembro de 2013

Emoções


As emoções não se explicam, elas surgem e se sucedem ao seu bel prazer. Ao seu bel prazer?

         Quase vinte anos de casamento. Homem e mulher mudaram no espírito e no físico. Ambos lamentaram algumas transformações, porém a mulher conseguia acomodar os desconsolos com as perdas, procurando e encontrando muitos lucros com a passagem do tempo na vida do seu par. Mas o homem andava triste e decepcionado, pois olhava a sua princesinha de antes, hoje virada numa matrona, completamente desandada nas virtudes do corpo, e não aceitava, de forma nenhuma, a mulher que caminhava ao seu lado. Sentia vergonha. É bem verdade, a mulher escolhida para compartilhar a vida com ele, ao longo dos anos lhe parecia cada vez mais amorosa, compreensiva, inteligente e produtiva. Engraçado, ele até sentia bastante desejo por ela ainda, ficava excitado quando a imaginava de camisola... Reflexivo ele consentia, o casal se entendia e se divertia nas brincadeiras por entre os lençóis. Era uma pena... Mas, e a vergonha dos amigos? Só pensar de os colegas não mais o verem enfeitado pela bela mulher, que um dia ela fora, lhe doía a alma.

         O homem não tinha coragem para a conversa franca, e foi empurrando com a barriga, já bem crescida também, a tristeza que aos poucos evoluía à depressão. A mulher, preocupada com o estado de seu homem, pegou-lhe de jeito e obteve a dolorosa confissão. Com o coração na mão, mas astuta, acalmou-lhe as preocupações. Acarinhou-lhe com amor e disse que seu mal-estar deveria ser apenas o cansaço de tanto trabalho. Sim, ela percebia que o tempo havia lhe transformado a aparência, mas não lhe havia tirado a beleza, e isso ela poderia provar. Ela propunha uma experiência que seria decisiva, mas para o dia seguinte. Naquela noite eles iriam somente relaxar, descontrair, se amar e descansar.

         Admirado com a segurança da mulher e feliz com sua sinceridade, assentiu com o adiamento das decisões para o dia seguinte. Naquela noite a mulher caprichou. Acendeu velas; trouxe para a alcova morangos e chocolate cremoso, além de espumante; providenciou música  suave e doce; se perfumou; e por fim vestiu um esvoaçante transparente e curtinho traje de dormir, transbordando mulher para todos os lados. Ela dançou para ele ver, dançou  grudando o seu corpo no dele. Tirou-lhe a roupa, peça por peça, e beijou-lhe as partes. Comeram os morangos lambuzados no chocolate que foram espalhados pelos seus corpos, e beberam o espumante a pequenos goles, babando de prazer. Orgasmo? De perder as contas, a noite in-tei-ri-nha. Desmaiaram em sorrisos de felicidade mútua e compartilhada.

         No dia seguinte o homem constrangido não queria mais a prova nem a experiência prometida, mas a mulher pediu, insistiu, e decidiu. Iriam à conferência necessária para a sobrevivência do casamento. Se ela provasse que ainda continuava bela como sempre fora, eles  conversariam em busca de acordos; se não, ela aceitaria imediatamente tratar da separação. A estratégia seria a seguinte. Eles se arrumariam e sairiam. Em rua bem movimentada da cidade ela passaria a caminhar na frente e ele alguns metros atrás. E ele veria, com os próprios olhos, como os homens ainda se viravam para admirá-la quando ela passava. O marido um tanto duvidoso, porém já menos inseguro por ver sua mulher tão poderosa em casa, e tão autoconfiante na postura em relação aos seus atributos, concordou com tudo.

         E foi assim que o fato ocorreu. Ela ia à frente vestida normalmente, caminhando de forma comum, rebolando como toda e qualquer mulher. Nada de excepcional nem para mais nem para menos. De repente ele viu um homem mais jovem, bem apessoado, cruzar por sua mulher olhando-a fixamente, depois sorrindo, e logo após virando-se para olhá-la mais uma vez. Adiante viu outro homem, um tipo grisalho aprumado, e logo depois outro, todo enfarpelado, procederem de maneiras semelhantes. E no percurso de duas ou três quadras foram muitos os homens de boa aparência que a admiravam, e se viravam a manter os olhos nela. Totalmente orgulhoso da sua mulher, não teve mais dúvida do mulherão que tinha em casa. Sim, ela estava transformada, ele é que não tinha entendido a nova beleza, mas hoje sabia, ela continuava gostosa, ele próprio conferiu. Já corroído de ciúme, apressou o passo, enlaçou com o braço a cintura da mulher e beijou-lhe a boca, demorada e apaixonadamente, em pleno meio do caminho. Voltaram a casa e ela tentou retomar o assunto, ao que ele a impediu desferindo beijos sobre beijos. O homem, aos sussurros, lhe implorou que encerrassem aquele assunto, e puxando-a delicadamente pela mão, encaminharam-se alegres ao ninho do casal.

Depois do episódio ela tentou emagrecer um pouco, mas não conseguiu jamais ser a jovenzinha de vinte anos atrás. Ele, porém, não se importou mais com esses pormenores. E, assim, o homem e a mulher viveram felizes para quase todo o sempre. Apenas o que ele nunca soube, e, ao caminhar atrás dela, ele não viu, é que a mulher escolhia figuras masculinas interessantes para fazer-lhes caretas e revirar os olhos e expor a língua. Mas, por que ele deveria saber deste pequeno particular tão insignificante?

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Aurora


Aurora costumava acordar num pulo e, rápida, abrir as janelas para sentir o cheiro do tempo. Os cabelos em desalinho, na cor do mel e caídos aos ombros em cachos divertidos, emolduravam seu rosto alegre de pele lisa e alva. Os olhinhos miúdos e brilhantes como pedrinhas de safira azul noite, logo corriam à janela do vizinho a procurá-lo. E, diante do rapaz já debruçado em outra janela, pousava seu olhar cálido nos belos e luminosos olhos verdes, como pasto, do jovem a sua espera. Sorria-lhe feito flor desabrochando, e acolhia seu sorriso cintilante como um beijo doce e úmido e quente. Aurora amava o rapaz, e com suspiros ela se despedia assoprando beijos que se abraçavam no meio do caminho, luzidos pelos resquícios de lua e pelas insinuações luminosas do sol.

Antes mesmo de o sol exibir sua forma circular perfeita inundada de fogo, agilmente Aurora se trocava e se ia, correndo pelo dia afora. Ao sair, as nuvens eram rasteiras e pintadas de róseo dourado, e na volta, elas se encontravam completamente afofadas e alaranjadas. Aurora cruzava pelas horas transformando-se num constante vir a ser. Tinha urgência pela vida e pressa para retornar ao ponto de partida. Aurora tinha amigos como laranjas penduradas no pé, e admiradores como pitangas enfeitando a pitangueira em plena primavera. Mas Aurora estava enfeitiçada, amava o vizinho dono de um sorriso carnudo e precioso, incrustado num rosto másculo de olhos cintilantes e vegetarianos.

Meses e anos foram trançados à linha do tempo e alojados no grande baú do passado, sem que nada se acrescentasse ao romance platônico de Aurora; eram sempre as mesmas cenas a se repetirem na interminável sucessão de dias. Amava o rapaz que com ela nunca falou. Amava o jovem postado na janela que não envelheceu. Amava o sorriso que jamais esmaeceu, e os verdejantes olhos que parecia nunca terem dormitado. Aurora foi perdendo o viço e entristeceu. Um dia acordou cansada e, sonolenta, saiu da cama com muita preguiça; ao invés de ir às janelas, arrastou o caminhar para frente do espelho. Diante do espelho Aurora não mais encontrou a sua imagem. Nele observava outra mulher. Os cabelos eram brancos com ondas sem molejo, a pele parecia uma folhinha seca encarquilhada, e os olhos empapuçados... E embaçados... Eram os seus? Aurora se encolheu. Lágrimas escorregaram dos olhos e dos céus. E naquele dia as nuvens não se pintaram de rosa, nem de dourado ou de qualquer outra cor, tudo estava feito de neblina e de sombras. O sol se escondeu e a noite se apresentou tão logo quanto pode. Aurora desfaleceu de melancolia em um único gemido.

Laranjas e pitangas ouviram o sangrar do coração de Aurora e prestimosos a socorreram. Sentindo-se cuidada, e amada com o amor que alimenta a vida, lentamente ela reagiu. E se recuperou; e avivou seus olhos com as luzinhas dos vagalumes. Aurora refeita em diferentes belezas, mais amadurecida e perfeita em sua imperfeição, mais alegre e encantadora, e saborosa como amora, por que não dizer? Abriu novamente suas janelas. Olhou o mundo estendido: viu saltimbancos passando pelas ruas, e para além deles, de relance, descobriu, e por um novo olhar se apaixonou. Um olhar debruçado no horizonte, sorrindo orvalho a lhe seduzir. Aurora, sem pestanejar, enfeitou-se e, desta vez, foi ter com o seu amado, amanhecendo os dias de mãos dadas com ele, ao sabor de beijos macios e refrescantes como sorvete.

 

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Chuva e pessoas vieram com tudo



              Quando acordei a chuva caia torrencialmente e tornava-se correnteza ao tocar no chão. O aguaceiro fazia uma cortina esfumaçada e impedia a vista de alcançar distância. Os rugidos vindos do céu haviam se acalmado, porém a cara do tempo não estava para muita conversa. Sem escolha, tive de sair às 7 horas da manhã, e neste momento a cidade já se encontrava afogada pelos excessos da chuva das horas antecessoras. As imagens eram desoladoras no caminho percorrido de automóvel: árvores caídas, ruas alagadas, carros boiando a deriva, e congestionamento. Muito congestionamento, principalmente perto das escolas.
      Com o caos instalado no trânsito, independente de qualquer comportamento humano, motoristas impacientes ainda aumentavam a confusão. Pessoas conseguiam piorar o quadro para lá de complicado, enfiando as mãos nas buzinas, enlouquecidamente, como se um milagre pudesse advir disso. Talvez elas acreditassem que, com as buzinações, houvesse alguma possibilidade de reversão da calamidade e dos fenômenos da natureza. Ou talvez, e mais provável, que estas pessoas inspiradas equivocadamente em personagens da sagrada história, e vestidas em suas onipotências, desejassem que, ao som das buzinas, o trânsito se abrisse para que elas pudessem passar.
             Naquela época, há quase mil e quinhentos anos A.C., Moisés tocou as águas do Mar Vermelho com o seu cajado, e elas se abriram dando passagem aos judeus em fuga dos egípcios. Segundo a Bíblia, Moisés agiu em conformidade com as orientações do Senhor, e para proteger um povo perseguido e mal tratado. Bem diferente dos que aqui buzinam em meio ao caos. Certamente eles se sentem os "senhores” todo poderosos da praça, e agem em conformidade aos seus interesses e para defender a causa própria, em detrimento do bem estar do outro, qualquer que seja o outro. Na minha modesta interpretação, na situação presente encontramos apenas umbigos e suas criaturas, com prepotência escorrendo pela boca e poros. Coletividade, sensibilidade, solidariedade, generosidade, ou assemelhados, são comportamentos ralos e pouco comuns em algumas pessoas nestas situações. Nestas situações?
         Apesar da falta de noção de uns e outros, as chuvas abrandaram minimizando a ira do tempo, e a maioria das pessoas comuns tiveram, e tem tido, atitudes de paciência e cooperação. Os dias vêm se apaziguando e a vida prosseguindo com ar de normalidade. Porém, o pior para mim, é que detalhes de intolerância na vida cotidiana ainda me surpreendem, espantam e horrorizam.

 

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Flores


A campainha tocou, era da floricultura: “flores para D. Ana”. Numa fração de segundo ela pensou: “não é aniversário, nem data especial, não, não são para mim”. Pelo interfone indagou:
- Senhor, para quem são as flores, mesmo?
- D. Ana de Miranda. Posso subir ou alguém vem buscar?
- Estou descendo, me aguarde.
Intrigada desceu as escadas, do terceiro andar ao térreo, procurando formas de adivinhar a origem e o motivo daquele regalo inesperado. Rápido o pensamento foi, voltou, mergulhou e voou. Nada. Era um dia qualquer, e ela não identificou razão para homenagem. Chegou diante do entregador, pegou as flores e foi direto ao cartão.
Embrenhado nas flores estava um pequeno envelope róseo com o seu nome escrito à mão. As letras levemente irregulares sugeriam ser da própria florista. Abriu o envelope e o cartão estava completamente em branco.
- Moço, vem cá, só um instante. O cartão está em branco. Será que não houve algum engano, ou esquecimento, ou.
- Não senhora, é isso mesmo. Mas se quiser alguma outra informação, ligue para a floricultura, quem sabe?
- Sim, sim, obrigada.
Olhou para as flores com encantamento: elas eram lindas e ricamente coloridas, e exalavam uma fragrância levemente cítrica e adocicada pelo ar. Sorriu. O buque era para ela, não importava quem lhe enviava; se a pessoa que oferecia não quis se identificar, ficaria sem saber. O fato é que ganhara flores, e isso lhe bastava. Satisfazia.
Escolheu um vaso de cristal grande e imergiu o jardim todo nele. Estudou um lugar iluminado, visível e próximo do computador. Queria desfrutar do prazer que as flores inspiravam enquanto trabalhava. Sentou-se novamente diante da tela para seguir nas traduções e, antes de dar partida aos dedos ágeis sobre o teclado, ainda admirou por longos segundos o seu novo cenário. Aspirou fundo o aroma e se concentrou, o dia prometia ser longo.
A noite chegou de mansinho e Ana nem se deu conta. Foi quando a fome bateu nas paredes do estômago é que ela percebeu o passar das horas. Estava feliz. Havia conseguido atingir a meta estipulada, e com leveza. O trabalho fluiu na companhia das flores. Tão belas e cheirosas!
Jantou, fechou o apartamento, e ia se preparando para dormir, quando o telefone tocou. Embora não fosse nem 21 horas, já era tarde para os padrões de Ana. Quem poderia ser ao telefone naquele horário?
- Parabéns a você, nesta data querida, muitas felicidades...
A cantoria seguiu e se repetiu mais uma vez. Do outro lado a voz era conhecida, masculina, "hum, mas de quem?" cogitou; ainda mais, errando grotescamente a data do seu aniversário? Tudo estranho.
 - Ana, Ana, Ana. Não estas entendendo nada, não é? Eu sei, eu sei. É que eu esqueci quando fazes aniversário, e andava lembrando muito de ti, por vários dias consecutivos tu passeavas por todas as brechas do meu pensamento. Aí resolvi te fazer uma surpresa. Gostaste das flores?
- João???
Uma gargalhada gostosa ecoou do outro lado.
- Estás na Bélgica??
- Mas volto até o final do ano, eles não me querem mais por aqui. Termino minha tese de bombacha e comendo churrasco no sítio da tia Suzi, perto dos amigos. Que tal já marcarmos um encontro?
- Para daqui quatro meses?? João!! Continuas o mesmo... Adorei as flores, elas trouxeram uma paz maravilhosa, alegraram meu espírito. Até trabalhei melhor, as traduções renderam como raras vezes. Obrigada. Só podia ser tu...
- Jura? Lembra-te das palavras mágicas?
- João, seu velho carente, ‘eu te amo’.
- Quer casar comigo?
- Olha... Não insiste que eu considero a proposta.
- Aninha, isso quer dizer um... ‘Sim’?
- Seu destrambelhado. Quero mais flores para poder dizer algum sim para ti.
- Uma vez por semana? Ah, Ana, se não for contigo, não há de ser com mais ninguém.
- Volta e veremos se manténs o pedido, seu tratante. Sabes quanto tempo não mandas notícias? 
- Aninha, liguei para te desejar feliz aniversário, feliz 'mesiversário', feliz 'diaversário'. Mereces felicidade sempre. Por que eu teria que esperar, e acertar, o dia da convenção? Todos os dias devem ser felizes, não achas? Gostou da surpresa?
- Meu querido de vida inteira, eu adorei. Concentra-te por aí, conclui o que precisas, e vem que estamos te esperando.
- Estamos??
- Vem João, eu estou te esperando. E nas tuas folguinhas, podes continuar mandando flores, viu?
- Eu também te amo, Ana. Beijão. Ah, e um abraço bem apertado de saudade. Estou chegando!
A ligação foi encerrada, mas os sorrisos ficaram enfeitando os rostos lá e cá. Sempre foram essas pequenas coisas, inusitadas, que fizeram a vida valer a pena, pensou Ana.


segunda-feira, 4 de novembro de 2013

VENTO



Ouvindo o canto do vento

percebi o passado achegando-se ao presente,

mesclando tempos e misturando sensações.

Este tal de vento que os olhos não veem,

mas que se abraça e brinca com a gente

e, quando embravece,

sabe maltratar quem vem pela frente.

Vento que clama, geme, aterroriza

e embala... Ilusões.

Vento que faz pensar e lembrar, e chorar.

Sim, estou nostálgica. Foi o vento

com o seu zunir querendo seduzir minha atenção,

que mostrou a friagem do meu coração,

hoje tão encolhidinho,

tão desagasalhado dos mantos furta-cores da paixão.



quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Recado aos meus "3 As"


      Hoje senti uma dor no peito, forte, de arrancar a respiração; uma dor que não era minha, mas doeu como se minha fosse, por alguma silenciosa identificação.
Hoje cumprimentei a mulher da minha faixa etária, que sempre cumprimento quando a encontro no vestiário, depois da atividade física. Hoje, pela primeira vez, ela correspondeu ao cumprimento através de murmúrios, além do usual e tênue movimento da cabeça. Em voz baixa ela falou, confidenciou com o desespero de quem está na beira do precipício e ainda tem dúvida se salta ou não, e chorou lágrimas de saudades do filho amado, que partiu para todo o sempre em um acidente de trânsito. E olhou nos meus olhos e suplicou algo que eu entendi, mas que não soube encontrar em mim de supetão. Senti meu coração sufocar no peito, as palavras encalharem no pensamento, e minhas mãos sobrarem no corpo. Depois senti uma enorme vontade de abraçar aquela mulher, de dividir minha força e meus sonhos de longos horizontes com ela. Hoje senti a dor dilacerante da mãe que perde um filho.
Em pensamento, procuro meus filhos e paro o tempo para mirar cada um deles, jovens que voam por esta vida a cumprirem com seus desígnios, tantas vezes de forma irresponsável e onipotente. Com o eterno e incomensurável amor que tenho por eles, peço baixinho, como em reza, para que se cuidem e não se exponham gratuitamente aos riscos que a juventude insiste em ignorar. Carrego o coração aflito, mas sempre esperançoso que um dia eles amadureçam e entendam, e nos perdoem pelas impertinências. E, quem sabe, até agradeçam pela reiterada insistência quanto às medidas de segurança.
Filhos amados, meus três adoráveis As, valorizem a vida de vocês com atenção e desvelo, pois se assim o fizerem, vocês também estarão valorizando e cuidando da minha vida. E, juntos, ainda teremos tempo para realizar dos simples aos malucos sonhos, e compartilhar felicidades a perder de vista.