E lá vinhas tu em minha direção pelo comprido corredor como de hábito
ao longo dos anos. A doce alegria que invariavelmente me acometia ao te ver,
Amora, nesse dia não me sorriu. Fiquei chocado, atordoado. Firmei o olhar e me
concentrei; juro que procurei em mim e em ti e no espaço que nos separava alguma
justificativa para o estranhamento. Mal pude pensar porque vinhas rapidamente, passo a
passo, diminuindo distâncias. De repente um arrepio me correu pela
espinha, e no exato momento reparei a ausência da tua aura, sempre tão cintilantemente
colorida. Estavas opaca, borralha, faltava
nitidez ao teu contorno. Esfreguei os olhos, incrédulo, e logo te vi diante de
mim como penumbra.
Amora querida, minha irmã de muitas vidas, naquele nosso encontro,
comum e casual, tu parecias outra; e de tal forma desconfortável comigo que
simplesmente eu não resisti: ao te cumprimentar - chorei. O mal estar que nos abarcou
te enrijeceu, eu vi. E, sem mais, o tempo parou e uma estrela se apagou. Em seguida,
ainda meio desajeitado, recobrei o prumo secando minhas lágrimas, e de
instantâneo te puseste a falar verborragicamente. Não foi difícil perceber que
te apiedaste de mim, que naturalmente deveria estar com problemas por trás do
súbito choro. Será que tu não percebeste a dor que senti pela tristeza que
estampavas na tua figura sombria? Assim, ambos silenciamos às verdades
imaginadas. Eu constrangido com o vazio dos teus olhos, tu esquiva às minhas
possíveis e desconcertantes reações. Como pode ser Amora? Onde ficou a nossa espontânea
cumplicidade que sempre falou mais alto que tudo?
E assim como este, seguiram-se outros encontros, todos com o mesmo
roteiro, embora em novos cenários. Apesar dos esforços para me conter, lacrimejei
quase todas as vezes que nos cruzamos, tu lembras? E cada um de nós seguiu na sua
representação neste nefasto atuar da vida, recheando as poucas conversas com
palavras medidas. Desde então, te confesso, andei pensando e pensando para
valer, e de coração te asseguro que eu gostaria muito de te dizer, Amora, mas pressinto
que tu não queres ouvir. Sei que dirás, com a convicção dos alienados, serem
os meus os olhos tristes, pois são eles que se derramam em lágrimas quando nos
vemos. Como posso explicar que eles choram justo quando te veem sendo apenas um
vestígio de quem tu foste? Amora, minha amada Amora, pareces embotada, talvez enfeitiçada.
O que se passa contigo? O que aconteceu com nossas almas gêmeas? Onde foi que a
confiança se perdeu? Adiantaria eu gritar, te sacudir, colher assinaturas dos
que também constatam a tua murchidão? Olha-te ao espelho e observa como o teu corpo se transformou numa couraça – rígida e impermeável – a te proteger dos teus
mais verdadeiros afetos.
Não suporto mais o mutismo das nossas essências, o teatro das
convenções, o distanciamento que se consolida entre nós, por isso hoje eu
escrevo essa carta que soprarei ao teu coração. Não direi verdades, pois não as
tenho, mas te revelarei as minhas mais sentidas considerações. Enviarei essas palavras
pelo ar, apostando que os ventos as conduzam até ti, pois sei que vens te suprido de muitos
ventos ultimamente – ora fresquinhos diante do calor, ora quentinhos diante do
frio. Mas ventos, e tão somente ventos! Soube, inclusive, que andas a comprar ventos, Amora, mas por quê? O vento pago te afasta da tua
aura; e, olha só, para te agasalhar dos ventos que açoitam tu acabas por te blindar. Algo me diz
que a tua vida está voando junto aos ventos que rodopiam, e se perdendo de ti em
redemoinhos.
Amora olha bem para ti, minha querida, te procura dentro, te afasta dos
ruídos ensurdecedores que te engolem e afina teus ouvidos à tua própria voz. Não
te deixa engambelar pelos contadores de histórias, pelos fabricantes de ilusão,
pelos ávidos oportunistas vigaristas e mentirosos de plantão, ou pelos
gananciosos seres que te fazem comprar ventos a peso de ouro. Presta atenção,
tu estás secando como amora-passa. Eu sei que tens sensores que percebem tudo e
muito bem, então, Amora, creia neles e resgata às tuas mãos a vida de estrela
brilhante que tu sempre foste.