quarta-feira, 15 de julho de 2015

Carta Soprada


E lá vinhas tu em minha direção pelo comprido corredor como de hábito ao longo dos anos. A doce alegria que invariavelmente me acometia ao te ver, Amora, nesse dia não me sorriu. Fiquei chocado, atordoado. Firmei o olhar e me concentrei; juro que procurei em mim e em ti e no espaço que nos separava alguma justificativa para o estranhamento. Mal pude pensar porque vinhas rapidamente, passo a passo, diminuindo distâncias. De repente um arrepio me correu pela espinha, e no exato momento reparei a ausência da tua aura, sempre tão cintilantemente colorida.  Estavas opaca, borralha, faltava nitidez ao teu contorno. Esfreguei os olhos, incrédulo, e logo te vi diante de mim como penumbra.

Amora querida, minha irmã de muitas vidas, naquele nosso encontro, comum e casual, tu parecias outra; e de tal forma desconfortável comigo que simplesmente eu não resisti: ao te cumprimentar - chorei. O mal estar que nos abarcou te enrijeceu, eu vi. E, sem mais, o tempo parou e uma estrela se apagou. Em seguida, ainda meio desajeitado, recobrei o prumo secando minhas lágrimas, e de instantâneo te puseste a falar verborragicamente. Não foi difícil perceber que te apiedaste de mim, que naturalmente deveria estar com problemas por trás do súbito choro. Será que tu não percebeste a dor que senti pela tristeza que estampavas na tua figura sombria? Assim, ambos silenciamos às verdades imaginadas. Eu constrangido com o vazio dos teus olhos, tu esquiva às minhas possíveis e desconcertantes reações. Como pode ser Amora? Onde ficou a nossa espontânea cumplicidade que sempre falou mais alto que tudo?

E assim como este, seguiram-se outros encontros, todos com o mesmo roteiro, embora em novos cenários. Apesar dos esforços para me conter, lacrimejei quase todas as vezes que nos cruzamos, tu lembras? E cada um de nós seguiu na sua representação neste nefasto atuar da vida, recheando as poucas conversas com palavras medidas. Desde então, te confesso, andei pensando e pensando para valer, e de coração te asseguro que eu gostaria muito de te dizer, Amora, mas pressinto que tu não queres ouvir. Sei que dirás, com a convicção dos alienados, serem os meus os olhos tristes, pois são eles que se derramam em lágrimas quando nos vemos. Como posso explicar que eles choram justo quando te veem sendo apenas um vestígio de quem tu foste? Amora, minha amada Amora, pareces embotada, talvez enfeitiçada. O que se passa contigo? O que aconteceu com nossas almas gêmeas? Onde foi que a confiança se perdeu? Adiantaria eu gritar, te sacudir, colher assinaturas dos que também constatam a tua murchidão? Olha-te ao espelho e observa como o teu corpo se transformou numa couraça – rígida e impermeável – a te proteger dos teus mais verdadeiros afetos.

Não suporto mais o mutismo das nossas essências, o teatro das convenções, o distanciamento que se consolida entre nós, por isso hoje eu escrevo essa carta que soprarei ao teu coração. Não direi verdades, pois não as tenho, mas te revelarei as minhas mais sentidas considerações. Enviarei essas palavras pelo ar, apostando que os ventos as conduzam até ti, pois sei que vens te suprido de muitos ventos ultimamente – ora fresquinhos diante do calor, ora quentinhos diante do frio. Mas ventos, e tão somente ventos! Soube, inclusive, que andas a comprar ventos, Amora, mas por quê? O vento pago te afasta da tua aura; e, olha só, para te agasalhar dos ventos que açoitam tu acabas por te blindar. Algo me diz que a tua vida está voando junto aos ventos que rodopiam, e se perdendo de ti em redemoinhos.


Amora olha bem para ti, minha querida, te procura dentro, te afasta dos ruídos ensurdecedores que te engolem e afina teus ouvidos à tua própria voz. Não te deixa engambelar pelos contadores de histórias, pelos fabricantes de ilusão, pelos ávidos oportunistas vigaristas e mentirosos de plantão, ou pelos gananciosos seres que te fazem comprar ventos a peso de ouro. Presta atenção, tu estás secando como amora-passa. Eu sei que tens sensores que percebem tudo e muito bem, então, Amora, creia neles e resgata às tuas mãos a vida de estrela brilhante que tu sempre foste.