Ontem cheguei a casa quando o dia
já se perdia em sombras. Eu estava atordoada do trabalho exaustivo, das pessoas
impertinentes e egoístas, do trânsito agressivo, da rotina maçante. Enfim, encontrava-me
saturada de tudo. Cruzei portas até irromper no lar, doce lar. Soltei a bolsa e demais tralhas sobre o
console perto da porta e, aos tropeços, caí feito um saco de batatas na
poltrona mais próxima, simplesmente a me deixar esparramar sobre ela. Fiquei ali
perdida do tempo, amorfa e anestesiada olhando o nada em meio à penumbra, pois
não me dignei nem a acender alguma luz.
Inerte como viga de concreto, estranha
e quase imperceptivelmente fui sendo virada ao avesso enquanto sugada em suaves
e ritmadas contrações para dentro de um silêncio profundo e doloridamente
ardido. Um silêncio entre outros tão meu. Ansiava por instantes de silêncio,
qualquer que fosse a circunstância e o jeito, mas as urgências, sempre elas, vinham
com autoridade e se impunham como exército em guerra. E o silêncio sufocado,
dia após dia, foi se adensando, se espinhando, se ressentindo. Agora, meu
silêncio em carranca, amargo, cobrava de mim tempo e atenção. Minhas lágrimas
ausentes choraram o nosso encontro.
A verdade é que meu silêncio têm
muitos modos e sentidos. Ele, assim como a solidão e o vazio, em composição ou
individualizados, dizem muito de mim, revelam a fragrância da minha essência. São
instâncias indispensáveis à minha sobrevivência no mundo. Naturalmente que
necessito, e muito, da inserção nos grupos das pessoas, de ouvir os ruídos e a musicalidade
da vida, assim como estar rodeada pela natureza e obras humanas. Mas a minha
balança exige o contraponto às demandas externas. Talvez, a essa falta de
consideração, o silêncio tenha demonstrado indignação me arranhando a alma.
Assim foi que a noite cresceu no
avançar das horas e o breu tomou conta do ambiente. Eu nem percebi, pois estava
completamente dominada pelos braços do silêncio e com a atenção,
hipnoticamente, cravada nele. Devagar o silêncio doído foi se amansando e, com
doces carícias de acolhimento, me seduzindo. E lá pelas tantas, sem que eu
entendesse ou explicasse, me peguei de olhos encostados e sorriso estampado na
cara, embevecida com a transformação do silêncio em cores tremulantes
irradiando-me leveza. Silêncio, meu refúgio de paz.
O silêncio se harmonizou comigo e
eu, através dele, me harmonizei com o momento e os fardos que compõem a bagagem
que devo carregar mundo a fora. Recomposta do estresse do dia, pulei da
poltrona com uma fome de cão e corri à cozinha para descolar as paredes do
estômago com alguma guloseima. Não quis saber das horas, pois já me sabia
atrasada, como sempre. Deixei para o dia seguinte à conferência do tempo do
relógio, do tempo da meteorologia, do tempo dos afazeres, do tempo das festas
de final de ano. Para a conferência do tempo a se criar ao próximo encontro com meus
silêncios.
E o frenesi continuou como a ventania da noite. “Quantos dias faltam para chegar o Natal? Céus, eu ainda tenho que correr muito para caber no tempo - qualquer um deles.”