terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Meu tempo, meu silêncio.


Ontem cheguei a casa quando o dia já se perdia em sombras. Eu estava atordoada do trabalho exaustivo, das pessoas impertinentes e egoístas, do trânsito agressivo, da rotina maçante. Enfim, encontrava-me saturada de tudo. Cruzei portas até irromper no lar, doce lar.  Soltei a bolsa e demais tralhas sobre o console perto da porta e, aos tropeços, caí feito um saco de batatas na poltrona mais próxima, simplesmente a me deixar esparramar sobre ela. Fiquei ali perdida do tempo, amorfa e anestesiada olhando o nada em meio à penumbra, pois não me dignei nem a acender alguma luz.

Inerte como viga de concreto, estranha e quase imperceptivelmente fui sendo virada ao avesso enquanto sugada em suaves e ritmadas contrações para dentro de um silêncio profundo e doloridamente ardido. Um silêncio entre outros tão meu. Ansiava por instantes de silêncio, qualquer que fosse a circunstância e o jeito, mas as urgências, sempre elas, vinham com autoridade e se impunham como exército em guerra. E o silêncio sufocado, dia após dia, foi se adensando, se espinhando, se ressentindo. Agora, meu silêncio em carranca, amargo, cobrava de mim tempo e atenção. Minhas lágrimas ausentes choraram o nosso encontro.

A verdade é que meu silêncio têm muitos modos e sentidos. Ele, assim como a solidão e o vazio, em composição ou individualizados, dizem muito de mim, revelam a fragrância da minha essência. São instâncias indispensáveis à minha sobrevivência no mundo. Naturalmente que necessito, e muito, da inserção nos grupos das pessoas, de ouvir os ruídos e a musicalidade da vida, assim como estar rodeada pela natureza e obras humanas. Mas a minha balança exige o contraponto às demandas externas. Talvez, a essa falta de consideração, o silêncio tenha demonstrado indignação me arranhando a alma.

Assim foi que a noite cresceu no avançar das horas e o breu tomou conta do ambiente. Eu nem percebi, pois estava completamente dominada pelos braços do silêncio e com a atenção, hipnoticamente, cravada nele. Devagar o silêncio doído foi se amansando e, com doces carícias de acolhimento, me seduzindo. E lá pelas tantas, sem que eu entendesse ou explicasse, me peguei de olhos encostados e sorriso estampado na cara, embevecida com a transformação do silêncio em cores tremulantes irradiando-me leveza. Silêncio, meu refúgio de paz.

O silêncio se harmonizou comigo e eu, através dele, me harmonizei com o momento e os fardos que compõem a bagagem que devo carregar mundo a fora. Recomposta do estresse do dia, pulei da poltrona com uma fome de cão e corri à cozinha para descolar as paredes do estômago com alguma guloseima. Não quis saber das horas, pois já me sabia atrasada, como sempre. Deixei para o dia seguinte à conferência do tempo do relógio, do tempo da meteorologia, do tempo dos afazeres, do tempo das festas de final de ano. Para a conferência do tempo a se criar ao próximo encontro com meus silêncios.

E o frenesi continuou como a ventania da noite. “Quantos dias faltam para chegar o Natal? Céus, eu ainda tenho que correr muito para caber no tempo - qualquer um deles.”


terça-feira, 22 de setembro de 2015

Decida e estude com determinação


(estudar para concurso em nova redação)

Estudar é algo a que estamos expostos desde bem pequeninos, porém, quando nos deparamos diante de um evento como vestibular ou concurso, parece que a ação de estudar se torna algo estranho e complicadíssimo para a maioria das pessoas. Nessas ocasiões, os estudantes de vida inteira se atrapalham como se fossem perfeitos principiantes, não sabendo por onde começar ou como proceder para estudar, nem tão pouco eles parecem ter noção de que é possível, ou melhor, é necessário lançar mão de estratégias para a obtenção dos resultados almejados.

Por essa razão, e justo por estar em meio a tantos estudantes para concurso, resolvi escrever sobre a óbvia ação de estudar (e vocês verão que não tratarei de novidades), mas que, no entanto, é capaz de tirar noites de sono e deixar o estudante em completo estado de calamidade pessoal.

Estudar é uma ação simples, embora tenha lá sua dose de complexidade, principalmente no que se refere à determinação efetiva do objetivo de estudar e seus persistentes esforços para personalizar os estudos às metas traçadas.

Vamos pensar juntos? Assistir aula com atenção é estudar? Sim! Mas é suficiente ouvir o professor versar sobre as matérias para que possamos dominar os assuntos? Claro que não! Então, o que é preciso fazer mais? Você tem alguma dúvida de que é preciso ler a matéria ensinada, reler os pontos mais difíceis, fazer anotações ou resumos, fazer exercícios, entender os erros cometidos retomando os conteúdos, e refazer os exercícios? Pesquisar e correlacionar? É muita coisa? Sim, mas estudar é isso mesmo, precisamos visitar e revisitar os temas do estudo muitas vezes e de maneiras diferentes, pois será nessa repetição e novos olhares que haverá a assimilação necessária para o êxito. Você nunca estudou assim? Mas deveria. Apesar disso, ainda está em tempo de aprender a estudar, de se superar e se surpreender com os conhecimentos adquiridos e armazenados, depende exclusivamente de sua decisão e do tamanho de sua determinação. Vamos tentar?

Agora, se por acaso você achou trabalhosa, desgastante, difícil ou inviável a minha proposta de estudo com todos aqueles passos e movimentos, eu sugiro, pare aqui, não prossiga, porque para passar em concurso é preciso estudar plenamente. E com muitíssimo esforço da vontade. Quem estuda mais ou menos fica mais ou menos pelo meio do caminho. E aí a frustração é enorme e a autoestima do estudante despenca às profundezas, e o tempo empreendido pode ser considerado de pouca valia, pois além da não aprovação, os conhecimentos adquiridos podem não se adequar a outros empreendimentos futuros. Não há demérito na decisão por outro rumo, o concurso é apenas uma das muitas opções disponíveis. Quem sabe você tenha mais sucesso dirigindo, desde já, seu tempo e esforços a outros objetivos que lhe sejam mais condizentes? Pense bem.

Então, vamos encarar o desafio? Pesquisadores, estudiosos e praticantes sugerem infinidades de estratégias para a finalidade do estudo, por vezes alternativas até adversas, mas encontrar o próprio jeito de estudar terá de ser uma busca individual e alcançável a partir das experimentações pessoais. Porém, uma estratégia que funciona para todas as pessoas é a organização.

Organize-se:

- Defina um lugar com a tranquilidade necessária para o estudo e organize-o excluindo dele tudo o que for possível e dispensável, principalmente se você tem déficit de atenção ou for hiperativo. Acerte a iluminação e a ventilação. Posteriormente, quando você já tiver alcançado algum ritmo de estudo, podemos nos arriscar a alternância de ambientes como estratégia;

- Planeje o tempo de estudo cumprindo cronogramas diários e semanais. Sempre que necessário, refaça o planejamento para adequar o cronograma às suas condições reais. Respeite as horas de estudo, de intervalo e descanso. Enquanto a hora for de estudo, deixe o celular desligado e completamente fora de alcance. Com o passar do tempo, ao cronograma deverá ser inseridos complementos como a hora da atividade física, a hora do filme e outros;

- Defina suas necessidades de sono, de alimentação e de lazer. Estabeleça regras e rotinas, pois elas são estruturantes e contribuem efetivamente ao objetivo do estudo. Arrume seus materiais e objetos pessoais.

Organize-se!

Podemos começar? Lembre-se: assistir aula, ler, reler, fazer exercícios. Faça seu primeiro cronograma para uma semana, com períodos curtos de estudo e breves intervalos sucessivamente. Aumente o tempo de estudo de pouco em pouco, dia após dia.

Com certeza você ainda voltará ao planejamento para refazer o caminho. Quando já estiver minimamente engajado em um ritmo de estudo, paulatinamente busque estratégias para qualificar o processo de aprendizagem. Recursos que poderão ser experimentados, avaliados e aderidos caso produzam os resultados positivos esperados, ou simplesmente substituídos por outros mais eficazes.




segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Escrevi - apenas e apesar



Procurei, ah se procurei, mas nada de achar a tal de inspiração. Simplesmente ela fugiu levando consigo todas as boas e médias ideias que costumavam esvoaçar no meu pensamento em suaves movimentos de plena discrição, quando não, que gostavam de se mostrar em maravilhosas e estarrecedoras avalanches criativas. A inspiração levou também as lindas e bem colocadas palavras que enfeitavam as ideias produzidas em textos. Lamentavelmente, hoje, carrego um oco na cabeça e outro maior ainda no peito. Acho que vou morrer, sim, tenho esse mau pressentimento, inclusive, nesse exato momento, eu acho que já estou morrendo, porque sem inspiração, com certeza não há vida em mim.

Sinto a alma se apagando silenciosamente, o corpo amolecendo a perder o viço, e a tristeza em metástases galopando à falta de esperança. Mas nunca fui covarde, e não há de ser agora que vou deixar tudo de mãos beijadas ao vazio de mim mesma. Ah, não vou mesmo. Lutarei contra a falta de fluxo, escreverei mesmo sem um pingo de inspiração, sem ideias e palavras bem arranjadas. Escreverei deixando os dedos dedilharem o teclado, mesmo que seja para se queixarem da falta de assunto. Deixarei as palavras se organizarem ou se desorganizarem ao bel prazer, para depois lhes conferir o intento, se houver algum. Escreverei e escreverei e escreverei até meu último suspiro. Até que eu encontre a paz!

Mas, os dedos estão em polvorosa, dizem que são operários, soldados, e precisam da voz de comando para trabalhar. Eu mandei que escrevessem, mas eles querem saber exatamente o que devem digitar. Como resolver a questão se as ordens específicas sumiram com a ausência da inspiração? Além disso, ai, a cabeça oca começa a dar sinal de vida latejando compassadamente, ai, temo que nela as batidas virem batucada. E olha só, para tumultuar a situação já crítica, o oco do peito se expande a vazios maiores. Isso estará aumentando o movimento de vida ou o de morte? Será uma reação de susto diante da provável confusão entre a minha exigência da escrita a qualquer custo e a reivindicação dos dedos por um líder que os instrua? Na contrapartida, a tristeza que se alastrava como veneno, atordoada com o reboliço a se instaurar, brecou o andar e se pôs a observar. E no puxa e empurra do escreve qualquer coisa, a falta de esperança que galopava feito amazona ávida, caiu do cavalo perdendo os sentidos, todos os sentidos de sua existência, ao bater com a cabeça numa pedra.  

Assim, através da coragem de insistir, do poder da contradição e do inexplicável, o oco da cabeça virou hematoma na queda do cavalo, e o do peito se transformou em ansiedade. A ausência de um líder, com autoridade para a criação e a execução da arte, gerou o movimento das partes à cooperação solidária, levando as palavras ditas e desditas a se fazerem dizer efetivamente. E a falta de inspiração, ou era de esperança? Enfim, uma ou a outra, sem os devidos sentidos, desprezou a ‘falta’ e permitiu a inspiração espiar, sabe-se lá de onde, e palpitar nessa escrita. E dessa forma, apesar de tudo e contra todas as evidências, esse texto foi redigido. Porém, se ele ficou bom é conversa que a gente pode ter em outra ocasião; o que sei, agora, é que o vazio da paz eu não encontrei pelo caminho trilhado, e bem da verdade, nem desejo encontrá-lo tão cedo. Ainda não! É, eu brigo, mas não cedo. Escrevo.
  






quarta-feira, 15 de julho de 2015

Carta Soprada


E lá vinhas tu em minha direção pelo comprido corredor como de hábito ao longo dos anos. A doce alegria que invariavelmente me acometia ao te ver, Amora, nesse dia não me sorriu. Fiquei chocado, atordoado. Firmei o olhar e me concentrei; juro que procurei em mim e em ti e no espaço que nos separava alguma justificativa para o estranhamento. Mal pude pensar porque vinhas rapidamente, passo a passo, diminuindo distâncias. De repente um arrepio me correu pela espinha, e no exato momento reparei a ausência da tua aura, sempre tão cintilantemente colorida.  Estavas opaca, borralha, faltava nitidez ao teu contorno. Esfreguei os olhos, incrédulo, e logo te vi diante de mim como penumbra.

Amora querida, minha irmã de muitas vidas, naquele nosso encontro, comum e casual, tu parecias outra; e de tal forma desconfortável comigo que simplesmente eu não resisti: ao te cumprimentar - chorei. O mal estar que nos abarcou te enrijeceu, eu vi. E, sem mais, o tempo parou e uma estrela se apagou. Em seguida, ainda meio desajeitado, recobrei o prumo secando minhas lágrimas, e de instantâneo te puseste a falar verborragicamente. Não foi difícil perceber que te apiedaste de mim, que naturalmente deveria estar com problemas por trás do súbito choro. Será que tu não percebeste a dor que senti pela tristeza que estampavas na tua figura sombria? Assim, ambos silenciamos às verdades imaginadas. Eu constrangido com o vazio dos teus olhos, tu esquiva às minhas possíveis e desconcertantes reações. Como pode ser Amora? Onde ficou a nossa espontânea cumplicidade que sempre falou mais alto que tudo?

E assim como este, seguiram-se outros encontros, todos com o mesmo roteiro, embora em novos cenários. Apesar dos esforços para me conter, lacrimejei quase todas as vezes que nos cruzamos, tu lembras? E cada um de nós seguiu na sua representação neste nefasto atuar da vida, recheando as poucas conversas com palavras medidas. Desde então, te confesso, andei pensando e pensando para valer, e de coração te asseguro que eu gostaria muito de te dizer, Amora, mas pressinto que tu não queres ouvir. Sei que dirás, com a convicção dos alienados, serem os meus os olhos tristes, pois são eles que se derramam em lágrimas quando nos vemos. Como posso explicar que eles choram justo quando te veem sendo apenas um vestígio de quem tu foste? Amora, minha amada Amora, pareces embotada, talvez enfeitiçada. O que se passa contigo? O que aconteceu com nossas almas gêmeas? Onde foi que a confiança se perdeu? Adiantaria eu gritar, te sacudir, colher assinaturas dos que também constatam a tua murchidão? Olha-te ao espelho e observa como o teu corpo se transformou numa couraça – rígida e impermeável – a te proteger dos teus mais verdadeiros afetos.

Não suporto mais o mutismo das nossas essências, o teatro das convenções, o distanciamento que se consolida entre nós, por isso hoje eu escrevo essa carta que soprarei ao teu coração. Não direi verdades, pois não as tenho, mas te revelarei as minhas mais sentidas considerações. Enviarei essas palavras pelo ar, apostando que os ventos as conduzam até ti, pois sei que vens te suprido de muitos ventos ultimamente – ora fresquinhos diante do calor, ora quentinhos diante do frio. Mas ventos, e tão somente ventos! Soube, inclusive, que andas a comprar ventos, Amora, mas por quê? O vento pago te afasta da tua aura; e, olha só, para te agasalhar dos ventos que açoitam tu acabas por te blindar. Algo me diz que a tua vida está voando junto aos ventos que rodopiam, e se perdendo de ti em redemoinhos.


Amora olha bem para ti, minha querida, te procura dentro, te afasta dos ruídos ensurdecedores que te engolem e afina teus ouvidos à tua própria voz. Não te deixa engambelar pelos contadores de histórias, pelos fabricantes de ilusão, pelos ávidos oportunistas vigaristas e mentirosos de plantão, ou pelos gananciosos seres que te fazem comprar ventos a peso de ouro. Presta atenção, tu estás secando como amora-passa. Eu sei que tens sensores que percebem tudo e muito bem, então, Amora, creia neles e resgata às tuas mãos a vida de estrela brilhante que tu sempre foste.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

O sonho pode esperar


Conhecer Londres havia sido um sonho acalentado com carinho por infindáveis anos; porém a realidade da vida cotidiana, sempre tão abarrotada de objetividades e urgências, tratou de empurrar cada vez mais à frente aquela almejada aspiração. E foi assim, só após a merecida aposentadoria, que Londres deixava de ser fantasia etérea para se materializar na sobriedade de suas cores, clima e arquitetura. Talita projetara ser londrina por seis meses. “Enfim!", pensava ela alegremente.
Passaporte pronto; matrícula efetivada no curso de inglês a dez minutos a pé de Greenwich; aulas particulares já agendadas para reforço ao aprendizado da língua; hospedagem garantida na residência estudantil; orientação para a chegada em Londres e a compra de um Oyster – cartão inteligente de transporte da cidade; mapas e roteiros com programação de passeios às margens do despoluído rio Tâmisa e aos pubs de Shoreditch; além de um bom guarda-chuva na mala, foram as principais iniciativas. No mais, tudo se transformava em detalhes. Detalhes que não acabavam, mas que a estimulava gerando recorrentes e prazerosos friozinhos na barriga.
Duas semanas antes da viagem, Talita promoveu uma pequena festa de despedida aos familiares e melhores amigos. Ficou emocionada com as manifestações de entusiasmo e apoio. Também quis se despedir da cidade, que nunca abandonou por mais de trinta dias. Escolheu pontos especiais para refrescar detalhes na memória. Porém, desde o primeiro dia do turismo local, a cada passo dado, a cada lugar visitado, a cada movimento seu para cá ou para lá, tinha a impressão de estar sendo observada. Era estranha e desconfortável a sensação, que parecia apenas ser uma sensação, visto que ao conferir, olhando aos lados e observando em torno, tudo parecia extraordinariamente normal. Era apenas sua sombra quem a seguia onde quer que ela fosse, mas realmente isso não parecia nada suspeito.
O mal estar, que se repetia na sequência dos dias, fez Talita comentar com os filhos. Eles acharam graça. Naturalmente ela estava nervosa, talvez um pouco insegura: “É nisso que dá uma velhinha se aventurar como adolescente”, zoava o filho caçula. Ela não tinha como discordar, era provável que andasse ansiosa, talvez um pouco tensa. Mesmo assim, a impressão de estar sendo observada só aumentou nos dias seguintes.
Às vésperas da viagem, Talita arrumou-se com esmero e foi à cafeteria preferida, no terraço ao alto da Casa de Cultura, com vistas ao Rio, para ver o pôr do sol que não tardaria a chegar. Acomodou-se com inspiração, sem antes, juntar sua sombra e a colocar confortavelmente sentada à sua frente. Olhava firme à sombra, procurava-lhe os olhos, percebia-lhe os sutis movimentos nos indefinidos contornos. Talita estava segura, sensível, queria acordo, e ela sabia - custou, mas descobriu - que a conversa necessária era com a própria sombra. Por isso elas estavam ali, somente as duas, diante do entardecer majestoso da cidade. Talita se concentrava na sombra, e a sombra dizia na sua imobilidade, sussurrava em seu silêncio, e a fazia entender que havia algo errado, ou era algo a ser feito? Mas o quê? Isso ela não conseguia dizer, ou Talita não conseguia entender. Mas havia uma mensagem no ar.
O sol se punha alaranjado entre nuvens arroxeadas, matizando o céu em tons vermelho, laranja, amarelo e azul esverdeado.  Talita sentou-se ao lado da sombra segurando-lhe a mão, e juntas entregaram-se ao espetáculo da natureza. As luzes acenderam-se ao escurecer do dia. Talita levantou, abraçou a sombra e saiu de volta a casa. Ainda faltavam as últimas providências.
Na hora de sair ao aeroporto, o checklist: malas enfileiradas, filhos e noras e netos a postos, passagens na mão, mas, onde está o passaporte? Talita tinha certeza de haver guardado tudo na bolsa, porém, não o encontrava. Um a um dos presentes vasculhou a bolsa, depois as malas e as gavetas e os armários e de baixo das almofadas, e, simplesmente nada do passaporte. Ele evaporou.
Enquanto os filhos ainda procuravam o documento, Talita, em sigilo, saiu em busca da sua sombra que também havia desaparecido. Depois de infrutíferas procuras, Talita pediu para um filho abrir e servir o vinho que estava na geladeira. Com convicção disse: “Vamos festejar! Depois eu procuro e acho o passaporte, fiquem tranquilos. Para quem aguardou sessenta anos por essa viagem, eu posso esperar alguns dias mais, sem problemas.” O filho mais velho chegou a ficar muito brabo com a irresponsabilidade da mãe, mas todos tiveram de acalmar os ânimos ante o fato: o tempo se esgotara. E, sem mais, beberam o vinho, chamaram telepizza e serviram suco às crianças, por que não?
No dia seguinte a notícia era manchete em todos os meios de comunicação: “O avião que partira rumo à Europa desapareceu no mar. Equipes de salvamento de vários países estão se dirigindo ao local para iniciarem as buscas.”


domingo, 31 de maio de 2015

Quem somos?


Somos instantes, foi o que li em pequenas letras no canto de um outdoor - a propaganda era sobre algo que nem me lembro do que tratava. Porém, a diminuta frase me impactou. Naquele instante eu era uma pessoa cansada, no volante de um carro em meio ao trânsito, voltando do trabalho em direção ao querido e doce lar, justo no final da tarde de uma exaustiva semana. O enunciado grudou no pensamento - como o refrão daquelas músicas pegajosas que tocam em determinado período, em todas as rádios e em todos os lugares - preenchendo o vazio daquela hora nublada. E instigando a lembrança aos instantes vividos, quaisquer que fossem, como que para justificar a importância e a profundidade da pequena frase apreciada.

Cheguei a casa, comi algo rápido, atirei-me ao sofá, mas não liguei a televisão como de costume. Ainda estava concentrada na identificação dos instantes que me fazem ser quem sou. Naturalmente foram os instantes nevrálgicos que sentaram comigo e ficaram. Não eram estes os instantes que eu buscava para valorar a minha existência, por isso tentei enxotá-los, mas eles insistiram e me dominaram. Logo eu me via abraçada em uma almofada, camuflada na penumbra do abajur, sofrendo com os problemas assolando uma sucessão de instantes da minha vida presente. Cansada e já entristecida, eu analisava minhas capengas estratégias diante dos instantes indesejáveis se avolumando.  Antes que eu me afundasse de vez no desânimo, resolvi mudar o rumo daquele momento. Levantei-me e selecionei a música “Don’t stop me now”, do Queen, para escutar - uma duas e muitíssimas vezes. Depois segui com a banda, entregue a ordenação das canções conforme determinação alheia.  E o colorido daquele instante se iluminou, e revitalizou a sensação de encantamento à ideia de que somos instantes. E mais, de que dispomos de algum poder sobre quem somos a partir de como agimos sobre os nossos instantes.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

O canto do vento


Adoro ouvir o vento assobiar com fôlego e energia - lembro-me da infância, da praia deserta, e de um tanto de mistérios.

O vento em uivos batendo portas e sacudindo janelas desperta minhas recordações e ilumina momentos distantes do passado, que, deslizando em ondas, se faz novamente um pouco presente. A pele arrepia. Sinto resquícios do cheiro do mar e o pinicar da areia nas pernas. Sensações pinçadas de um tempo em que o mar tinha perfume, a areia vida, e o vento, ah, o vento... O vento contava histórias de romances e aventuras e assombrações, quase todas ocorridas nas águas geladas do mar ou entre as dunas de areias brancas ou sob as árvores nervosas e sacudidas.

Terá sido o vento? Sim, foi o vento que me trouxe a praia e a nostalgia.

Sinto saudade das amizades e das bicicletas tremelicando pelos buracos das ruas de um litoral praticamente despovoado de março a dezembro; saudade das intensas disputas entre irmãos, e alguns raros vizinhos, que não duravam mais do que cinco minutos. Saudade dos amores platônicos que justificavam suspiros e milhares de corações desenhados nas areias e em todo e qualquer lugar; das pessoas importantes e insignificantes que conheci e lembro com a perfeição do imaginário. Ah, saudade das ilusões geradas pelo doce olhar encantado de uma criança. Ilusões que me abandonaram em meio aos caminhos pedregosos da vida, mas que jamais me abandonarão, porque a criança ainda mora em mim, e é através dos meus olhos que ela sonha. Mas, por hora a criança dorme. E dorme.

Ouvindo o vento percebo o passado beijando o presente, mesclando tempos e misturando sensações. Vento que os olhos não veem, mas que abraça, e brinca, e quando embravece maltrata quem vem pela frente. O vento me emociona, embala e até assusta. Mas é quando ele zune compondo melodias, quando cutuca lembranças e pensamentos é que o vento faz chover... Meus olhos estão molhados. Emocionados. 

Amigo vento, o teu canto mexe comigo e me instiga a procurar a inocência do instante brincado. Sabe, tenho estado tão encolhidinha, tão ressentida com as friagens dos corações humanos... Onde estão os mantos coloridos e fofinhos que a gente pegava para se enrolar e se aquecer e se divertir diante das tuas provocações? 

Oh vento, tu que acordas minhas lembranças, desperta essa criança dorminhoca que vive em mim?



domingo, 10 de maio de 2015

Exercício atrasado - parte 5 (final)


Enfim, sem opção, pois o acordo foi realizado entre a Vida e a Morte, me resignei ao novo destino. Confesso que hoje estou tranquilo e feliz, pois minha morena, que não é só minha e eu aprendi a aceitar o fato, sempre me seduz com seus diversos encantos e algumas novidades, evitando de me expor às constantes e infinitas turbulências, como era comum na minha relação com a Vida.

A Morte é serena e extravagante ao mesmo tempo, é quieta e excitante, é apimentada e tradicional. Mas por pura discrição vou me abster de contar os detalhes da minha morte, pois um dia todos haverão de se encontrar com a sua, em suas próprias vidas.

                 A tudo isso, porém, existe um pequenino “se não”. Com a convivência descobri que a Morte, além de ciumenta, é muito possessiva. Por isso faço esforços para não provocar a ferina mulher. Mas, nas ocasiões em que a bonitona descobre que eu, de vez em quando, ainda espio a Vida, fica muito brava comigo. Aí ela me agarra pelo cangote, endiabrada, me arrasta para a suíte,  e me faz trabalhar até a exaustão, até eu esquecer que a Vida existe. Mas eu não esqueço, só finjo.

E a outra, por sua vez, fica me acenando de longe, mandando beijos e piscando seus olhinhos de jabuticaba. No fundo eu sei, sinto, ela sempre há de gostar de mim, porém não me deseja mais. Mesmo assim, sigo sonhando em segredo com a Vida, quase todos os dias da minha morte.



PS: 

Professor, esse foi o texto que produzi sobre a Morte, conforme sua solicitação na Oficina de Escrita da Biblioteca Central. Peço-lhe, por favor, que receba meu exercício, mesmo com os anos de atraso. Desculpe-me o ímpeto de outrora e o de agora. Na esperança de que o Senhor não me reprove, subscrevo-me. E até breve.



sábado, 9 de maio de 2015

Exercício atrasado - parte 4


No preâmbulo da difícil conversa, Vida e Morte explicaram que o acordo entre elas fora amarrado a partir de duras e difíceis negociações, que eu não pensasse que a paz alcançada tivesse sido fácil ou barata. Assim, abstraindo o complexo processo e sintetizando ao desfecho, a cândida Vida continuou a proferir harmoniosamente:

- Pois então, como a Morte levaria com ela o outro sujeito, que era mais jovem, apesar de salafrário, e eu te acompanharia apenas por uma insignificante porção de anos, nós concordamos em realizar trocas. Entre elas, a Morte me dá mais tempo para o jovem se redimir e se ajeitar, e eu com muito pesar te libero para ela. Vida percebendo que meus lábios tremiam como se eu fosse chorar, insistiu. Não pensa que foi fácil acertamos nossas condições, saiba que eu sentirei muitas saudades tuas.

Dizendo isso, Vida congestionou os olhos enchendo-os de lágrimas escorregadias, brilhantes gotículas de pura beleza deslizando naquele rosto delicado de porcelana. Discretamente ela fez beicinho, depois soltou um soluço que reverberou na peça. Fiquei emocionado tentando não cair em pranto. Nem sabia que a Vida me amava desse jeito. Sinceramente, nunca prestei muita atenção a ela, assim. Achava que a vida era apenas destino e não pensava nem me importava muito com ela. Estranhamente fui empurrando tudo com a barriga durante a minha existência. Lacrimejei. Estremeci o corpo de cima a baixo e feito criança, já chorando deslavadamente, estiquei os braços na direção da Vida:

- NÃÃÃO! Eu te amo Vida! Eu te desejo minha Vida amada, não me entregues de mãos beijadas a essa tal de Morte, que eu nem conheço direito. Ainda poderemos ser felizes juntos, eu te prometo mais dedicação, mais respeito, mais.

Eu continuaria a fazer declarações à Vida se a Morte não tivesse me interrompido com tamanho sarcasmo.

- Não me conheces, mas me cobiças. Confessa! Pensa que não sei? Quantas vezes eu te vi espichando os olhos cheios de desejos para mim? Quantas?

- Prevalecida, reagi com angústia em voz esganiçada. Eu amo é a Vida, és tu quem vive a me assediar com esse corpão cheio de mistérios e odores, com este olhar de pura perversão, com estes cabelos em caracóis se enroscando e me acariciando... (Pensei: estou me entregando, mas agora não tem mais volta. Eu sou homem, não resisto, ora bolas.) Mas a verdade pura é que eu amo a Vida, viu Morte. Eu amo a Vida! Eu errei, minha Vidinha, eu errei, tu já me bastavas, não precisava ter cedido aos encantos desta outra aí, eu sei que não precisava...

E a Vida fungava tristonha, como se fosse eu, e não elas, quem tivessem decidido tudo. Olhava-me com amor, com pena e rancor, às vezes, eu sentia, até com certa raiva de mim. Será que eu realmente traí a minha Vida?

- Não temas querido, serás feliz comigo também. A Vida já teve o seu tempo, não aproveitou mais porque não quis, ou porque não foi suficientemente competente. Agora é a minha vez. Tu me amarás e morrerás em mim tantas vezes quantas quiseres. Não me trairás, não sentirás culpas, e nos amaremos para todo o sempre. Estarei sempre contigo, não farei como a Vida que por vezes se descuida de seus amores, e eles acabam se perdendo dela e me cobiçando.

E a Vida quietinha, afundada na sua confortável poltrona ao lado da minha cama, sem emitir qualquer palavra, permitia seu colorido esmaecer-se diante da minha visão. Irritado com o andor dos acontecimentos, chamei pelos meus brios.

- Tudo bem, Morte, nós nos amaremos e seremos muito felizes. É isso que me dizes, mas tu serás só minha? Serás fiel a mim?

- Seu bobinho egoísta, eu sou mulher de muitos homens, como a Vida também o é. Tu não sabes, não?

- Não aceito que fales mal da Vida, mulher pura e doce, um anjo de criatura, uma santa, minha deusa.

Vida baixou os olhos e se encolheu. A Morte continuou:

- Somos diferentes de vocês, bem mais liberais e abrangentes, não discriminamos nossos amores por sexo, raça, nem condição social e econômica. Apesar de sermos um pouco ciumentas, mas um tantinho só, e mostrou um pequeno espaço entre os dedos para demonstrar. Mas vamos deixar essa conversa de lado, é muito complicado para a ocasião. Meu querido, nós teremos um tempo infinito para abordarmos qualquer assunto que desejes nos dias que seguirão até a eternidade.

- Vida? Vida adorada, olha nos meus olhos e me responde, diz para mim que a Morte mente. Tiveste outros homens além de mim?

O silêncio da Vida tornou-se sepulcral enquanto a Morte gargalhava solta em altos brados e me admirava com ares de vitória.

- Eu fui traído pela Vida a vida toda? Não, eu não aguento mais de decepção. A minha Vida?

Tudo aquilo era estranho demais, muito além das minhas condições de compreensão, a vida tinha passado em vão pelos meus quase cinquenta anos, e agora diante do fim, o ajuste da Vida diante da Morte estava me deixando louco. E a Morte, sempre tão enigmática, ali se descortinando, quase mais transparente do que a translúcida Vida que me cegou o tempo todo.
(continua)

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Exercício atrasado - parte 3


Só poderia ser um pesadelo tudo aquilo, pois nada de nada fazia qualquer sentido. Por isso, eu tinha certeza, precisava reagir urgentemente em minha própria defesa. Mas como? Impulsivamente, e completamente enfurecido, me debati como pude na cama onde estava e ordenei a plenos pulmões que as duas belas mulheres me soltassem e saíssem do quarto naquele instante, sem mais nem menos. Sobressaltadas elas me largaram. Entreolharam-se bufando, vermelhas e suadas, e voltaram suas atenções novamente para mim. A morena adoçou a voz e tentou um “mas”, porém eu a interrompi prontamente falando em tom de voz baixa, quase rosnando, e mandei que elas conversassem lá fora, que se comportassem como pessoas adultas que elas eram e entrassem em acordo. E só me voltassem com alguma solução para o impasse. Contrariadas as duas saíram obedientes, mas ainda se enfrentando por olhares. Fiquei radiante comigo e com minha atitude de coragem, embora tremendo desde a raiz dos fiapos de cabelo até o resto todo.

Do quarto eu as ouvia conversando, brigando, gargalhando, ironizando, sussurrando num círculo quase vicioso de ações. Passaram-se horas, talvez dias, enquanto no meu tempo eu comia, dormia, ouvia música e ia me acomodando naquele lugar nem bom nem ruim.

                Aos poucos a tensão do lado de fora foi diminuindo, diminuindo e eu percebi que as duas conversavam como comadres, alegres e satisfeitas. Mas nada de entrarem no quarto. Será que elas desistiram do acordo? Será que as musas se esqueceram de mim? Comecei a ficar agoniado enquanto elas, tranquilas, mantinham-se no maior bate papo. De um novo jeito as beldades estavam a me desassossegar: agora não mais brigando, mas  abandonando-me à própria insignificância, em plena cumplicidade; ou será que elas estavam tramando contra mim? Ufa, como é difícil entender as mulheres! Antes elas me disputavam como se eu fosse a maior preciosidade do mundo, depois estavam a me ignorar como se eu nem existisse. Já estava com os nervos à flor da pele quando novamente, aos berros, chamei as maravilhosas megeras a entrarem para falar comigo.

                Sem pressa, cheias de sorrisos, as duas entraram bebendo uns líquidos estranhos com cheiros estranhos. Mastigavam com profundo deleite sei lá o quê. Cada uma sentou em sua poltrona, com serenos olhos a indagaram sobre a minha urgência, ou era sobre a minha fúria? Logo percebi que elas queriam me enlouquecer. Não tive dúvidas. Respirei fundo na tentativa de buscar o autocontrole e iniciar o diálogo:

- Aquietaram-se, então? Conseguiram ficar amiguinhas? Será que posso concluir que chegaram a algum acordo?

Distraidamente assentiram com suaves movimentos de cabeça, quase em sincronia dançante.  Elas estavam ainda mais deslumbrantes com aqueles ares de anjas recém-caídas do céu.

- Antes de conversarmos sobre o acordo de vocês, alguém poderia me explicar por que tenho a honra de tê-las, tão belas, a me disputarem?

Ambas sorriram com malícia. A morena olhou-me com desejo ardente, deslizou a língua suavemente pelo lábio inferior lubrificando-o. Uniu-os e insinuou um beijo, comprimindo de leve e simultaneamente os olhos. Foi a ruiva, porém, com voz de fruta silvestre quem falou.

- Eu sou a Vida e ela é a Morte. As duas brilharam, sorriram graciosas. E eu desmaiei.
(continua)

domingo, 3 de maio de 2015

Exercício atrasado - parte 2


Então, foi assim que tudo aconteceu. Um dia perto do final do mês eu vinha enlouquecido pelas ruas com o intuito de chegar ao banco antes dele fechar, precisava fazer uma transação muito importante e tinha que ser naquele dia mesmo. Ah, se eu soubesse que realmente não havia urgência! De repente vi um tumulto, achei que era um assalto, mas não pude saber; porém era impossível não ver aquele mulherão de curvas fartas, longos cabelos anelados caídos até o meio das costas, tão negros que pareciam azulados sob a luz do sol. A bela, cheia de adornos dourados, tinha os olhos ávidos de um castanho tão claro que quase parecia amarelo, e, hum, uma boca maravilhosa, carnuda e bem pintada de vermelho sangue. Sangue. Parecia que ela buscava sangue. Olhava para os sujeitos rolando na calçada, olhava para todos os lados e a toda gente que entrava na confusão. Ainda me perguntei, será que ela procura alguém? Pois, quando nossos olhos se encontraram, a mulher me sorriu a pleno expondo uma dentadura alva e perfeita como nos comerciais de pasta dental. Eu paralisei. Senti um soco no estômago, algo morno a escorrer pelo corpo e uma falta de ar repentina, como se mãos estivessem a me estrangular o pescoço. Sem o desejar, caí e perdi completamente a conexão com o mundo e com a magnífica morena.

Quando acordei estava num lugar suave, bonito, etéreo. E perfumado. Perfume de mulher bonita. Aspirei com gosto e procurei. A surpresa foi total. Duas mulheres pularam de suas poltronas confortáveis, cada qual de um lado da cama, e sem palavras se aproximaram de mim, ali estatelado, completamente inerte. Acariciaram meu rosto, afagaram meus parcos cabelos discretamente esbranquiçados pelo tempo, pegaram minhas mãos enfeitadas com veias saltadas em tom azulado e algumas manchas do sol, além de, oh, o que era aquilo? Sim, eram finos canos cravados na pele gotejando medicação ao pobre e débil corpo ali estirado. Ambas me beijaram com delicadeza no rosto e nas mãos.

A morena era linda, sim, era aquela que me fulminou com seu sorriso de pasta dental e olhos de gata. Mas, e a outra? De enlouquecer! Não perdia em nada aos encantos da morena. Uma ruiva de tirar o fôlego. Alta e esguia, com suaves curvas bem colocadas, pele macia e muito clara, olhos quentes de um marrom brilhante, cabelos longos lisos e de um suave avermelhado cheio de luz. Suas vestes muito coloridas, muito decotadas, muito insinuantes com transparências salpicadas, faziam-na profundamente provocante. Ah, e o sorriso... Lindo e largo, em boca finamente desenhada e cintilante, cheinha de dentes miúdos branco-reluzentes. Provavelmente ela era a garota-propaganda concorrente nos anúncios de  pasta dental.

Com delicadezas, as duas pareciam querer me seduzir. Sentia-me no paraíso, mas percebia os olhares felinos trocados entre elas. As duas brigavam silenciosas enquanto me agradavam. Passado algum tempo, que não sei definir quanto, daquele prazer quase orgástico por tanto paparico, passei a sentir certo desconforto, que logo se transformou em dor física e emocional. Rapidamente eu estava desesperado com as duas deusas me disputando explicita e cruelmente.

De carinhos amáveis elas passaram a me puxar cada qual para o seu lado, com insuspeita força apesar da fragilidade transparecida. De início elas me puxavam para lados opostos pelos braços, depois já me puxavam também pelas pernas, e só não pelos cabelos, certamente, por falta deles para isso. A situação ficou insuportável e passei a gritar, e aos berros, pedir que me socorressem daquelas duas malucas. Urrava de dor, de medo, de horror, mas absolutamente ninguém apareceu a me salvar. E o pior, as moças aumentaram a gritaria exigindo aos brados que eu escolhesse apenas uma delas. Como eu faria isso? Quem escolhe alguma coisa naquelas condições? Elas eram apavorantes; ao mesmo tempo, não conseguiria negar nem esquecer, elas eram profundamente encantadoras. Até poderia querê-las, escolhê-las, quem sabe, fazer algum pacto para as duas beldades ficarem comigo , mas na verdade, naquele momento, o que eu mais desejava, mesmo, era fugir das belas feras e voltar à minha vidinha medíocre de sempre.

Ah, foi eu pensar assim que a ruiva deu um salto de alegria, elevou os braços e bateu palmas sobre a cabeça: “ele me escolheu, ele me escolheu.” Atirou-se a me abraçar e beijar insanamente, enquanto a morena, entre unhas e dentes, esforçava-se para desgrudar a rival de mim. Eu, cada vez mais perplexo e confuso, concluí: a luta continuaria em nova rodada.

(continua)

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Exercício atrasado - parte 1



Há um tempo eu desejei ser escritor. Embestei na ideia e nada nem ninguém seria capaz de me demover dela. Na verdade, nunca havia escrito coisa alguma, se não algumas poucas redações lá nos anos de colégio - modéstia a parte, excelentes redações, inclusive, muito bem avaliadas pelos professores. Mas, efetivamente, não foi por isso que desejei ser escritor. Verdade seja dita, sempre senti correr nas veias o sangue artístico, que, no entanto, não se encaixou em arte alguma ao longo dos meus quarenta e poucos anos. Então, escrever me pareceu ser promissor e divertido, a altura das minhas expectativas. Assim sendo, para a largada, procurei um curso ou oficina de escrita para me instrumentalizar e seguir em meus planos.

Esperei ansioso pelo início da Oficina de Escrita oferecido pela Biblioteca Central. No primeiro dia de aula o professor fez todo um blá, blá, blá e depois mandou que escrevêssemos sobre o casamento. Achei interessante a proposta, embora minha vivência nesta seara fosse pobrezinha além da conta, afinal estive casado oficialmente menos de três anos. Mesmo assim, testemunhei muitas cerimônias de casamento, fui confidente de alguns amigos diante de suas crises conjugais, e, mal ou bem, namorei muito, muito mesmo, fugindo sempre desse tipo de compromisso. Enfim, com um pouco de esforço consegui achar o que escrever. Não me saí muito bem, mas me perdoei, pois além do tema não ajudar, este texto havia sido o primeiro após punhados de anos sem escrever nada; naturalmente me encontrava enferrujado para tal empreitada. Teria de ter calma; justamente eu estava lá para retomar e aprender. Meu sonho reivindicava orientação e exercícios e alguma paciência.

Na segunda aula o professor fez uma dinâmica com o grupo - um pessoal incrível e predominantemente feminino. Fez mais um blá, blá, blá e pediu que escrevêssemos sobre a morte. Aí a situação começou a ficar difícil, escrever sobre a morte? Mas por quê? Dissertar sobre a vida é muito mais divertido, a gente tem mais o que dizer, tem muito mais a ver. O professor olhou para mim com ares de decepção e fincou pé: “escrevam sobre a morte!”

Que tema bem ruinzinho, pensei, e sem saída iniciei a história pelo velório. Quando me dei conta, sem nenhuma definição de personagem ainda, eu já estava com os olhos marejados, nariz vermelho e fungando. Tentei mais uma vez. “Professor, não posso escrever sobre o nascimento?” O homem franzino de olhar escuro, botou fogo nos olhos e me fulminou. Antes que eu ficasse mais chamuscado, baixei a cabeça e tentei novamente entrar na proposta-exigência. Enredei rabisquei escrevi risquei e nada prestou. Comecei a suar, a gelar, a chorar de novo. Odiei aquele sujeito, odiei estar ali, odiei meu desejo de ser escritor. Num rompante eu levantei, juntei meus pertences, e sem olhar para trás deixei professor, curso e sonho de ser escritor exatamente ali. Virei a página.

Naquela época eu não sabia e nem podia escrever sobre a morte, estava além de mim. Mas hoje tenho experiência, já passei pela morte e, estando com ela, posso contar tudo, detalhe por detalhe, inclusive com as devidas ênfases. Só não sei se o professor aceitará ler o meu texto depois do tempo passado e do desaforo que fiz. De qualquer maneira, farei o exercício para me redimir, nem que seja comigo mesmo. Depois envio para o professor e seja o que tiver de ser.

(continua)

quarta-feira, 11 de março de 2015

Ana Tereza




Recostada na antiga poltrona junto à sacada, completamente iluminada pelo sol matinal e refrescada pela brisa primaveril, Ana Tereza abriu o grosso livro de sempre em qualquer página, e como fazia com relativa frequência, imergiu para as profundezas de si a conversar com os próprios pensamentos. Naqueles momentos ninguém conseguiria saber ao certo se ela lia ou meditava, tal era o nível da concentração.



“Teimosos pensamentos que vão e que vem e não me dão trégua, nem um pingo de sossego. Mais uma vez estou aqui, neste incansável diálogo monologado. Menti, eu sei e assumo: minha culpa, minha culpa, minha culpa. Mas realmente eu não queria ter agido assim. Não aprovo as mentiras, odeio quem vive delas. Creio ter mentido por pura sobrevivência. Ou, será que minto agora para minimizar minhas culpas? Para esconjurá-las? Talvez. Mas que culpa tenho eu de que a mentira por vezes é a única saída para nos salvar do desespero, da mediocridade, da inércia? E, sonhar é mentir? Afinal, com honestidade, nem sei bem ao certo o que é essa tão almejada verdade que persigo há anos, que se diverte a me escapar por entre os dedos sempre que creio tê-la assegurada nas mãos. Foram infinitas as vezes que jurei pensar e falar e querer a mais pura das verdades; para depois descobrir que eu mentia deslavadamente, mentiras proferidas a mim mesma, levando-me a enredos e enganos, e à construção de falsos alicerces. Céus, quanta ironia. A vida é feita de ironias, e essa tal de verdade é uma robusta e implacável ironia. Chega até ser engraçado. Não, não tem graça alguma, a situação é triste: eu não sei distinguir o limite entre a verdade e a mentira. Seus líquidos se misturam e se interpenetram e se transformam em, em quê, realmente, se transformam? Como ser sincera com quem quer que seja se eu própria desconheço minhas verdades? Elas são tantas e enlouquecidamente contraditórias, são tão confusas que me atordoam e quase mais se parecem com mentiras. E mesmo assim eu as compartilho, as defendo como joias raras e as propago ao vento. Ah, o vento! Com que prazer desfruto esse sopro de ar no meu rosto. O vento! Aí está, o vento que me acaricia é prazer ou consolo? Vento que me faz companhia com sua presença silenciosa, mas que me conduz ao abandono profundo de mim, que me expõe à solidão da alma, que me provoca diante das mais incrustadas e discutíveis verdades. Ah, vento que me dá prazer e consolo e saudade. Vento meu, bafeja sobre mim e me cobre com um pouco da tua realidade boa. Hum! Estou com sede. Mais uma vez a realidade impondo-se como verdade. Ou como fuga? Tanto faz, estou com sede, somente isso importa agora.”



Da sensação de sede seguiu-se um longo suspiro, feito gemido, liberto da escuridão dos questionamentos de Ana Tereza, devolvendo a sua atenção ao colorido da primavera. Na copa das árvores as flores amarelas dançavam ao embalo do vento, tendo as folhas verde-escuro como pares tremulantes. A natureza cantava e brincava com o movimento de suas sombras no gramado. A paisagem envolveu o olhar de Ana Tereza secando a sede como premência. Absorvida pelo cenário, ela planou as emoções sem noção de tempo até aterrissar nas sombras do jardim. Os olhos ali parados, cravados e enfeitiçados, num piscar se voltaram ao mundo interno. E ela retornou às elucubrações, atraída por novo ângulo do seu caleidoscópio da vida. O livro deitado sobre o colo rolou as páginas exibindo outro ponto do texto que, igualmente, não seria lido.



"Bela é a primavera com suas cores e sombras. Sombras que nos seguem e perseguem e trapaceiam. Existem à custa das coisas e das luzes, luzes que iluminam as coisas que criam seus respectivos fantasmas - as sombras. Às vezes as sombras parecem crianças brincando livres, outras vezes elas se parecem com seres assustadores e persecutórios nos lançando ao medo. Sombras do pensar, sombras do amar, sombras das sombras.”



Ana Tereza fechou e apertou bem os olhos para melhor ver suas próprias sombras.



“Carrego no coração sombras inquietas que se reinventam em desenhos e tons. Algumas até são alegres e enfeitam, mas muitas delas são melancólicas, vestem-se de cinza, marrom e negro. São sombras que sabem ameaçar quando, poeirentas, se alastram e dominam ao mínimo descuido meu; quando escondem o tempo presente de mim. Algumas das minhas sombras sabem ferir cavando buracos fundos e sangrentos. São sombras envenenadas. Por que meus sentimentos não conseguem se livrar dessas sombras malditas? Elas roubam minhas esperanças. Roubam-me a vida que escasseia. Não sou amarga ou azeda ou ácida. Onde estão minhas doçuras? Em algum lugar sei que carrego o arco-íris e as gargalhadas do mundo. Sei que posso ser luz contagiante e me fazer em brilho. Cara ou coroa? A moeda girou, parou, a imagem mudou: antes era cara, agora é coroa. Olha só como sou presunçosa. Já me pus colorida sobre um palco iluminado a irradiar preciosas emanações. A modéstia me driblou e se esquivou de mim, fugiu, se escondeu a um canto; e as malévolas sombras evaporaram ao meu deslumbramento. Como posso levar minhas reflexões a sério se dou a mão ao primeiro pensamento faceiro que me cruza, e por ele me deixo conduzir? O vento soprou, as sombras se moveram e as lágrimas pelas minhas desventuras, dores ou amarguras evaporaram. Ou foram se derreter em alguma sombra oculta? Sim, tenho sombras, esconderijos e abismos em mim, mas também sinto a existência das belas sombras, dos divertidos esconderijos e. Não, os abismos não, eu tenho medo deles. De novo a sede, estou com sede. Chego a sentir um leve mal estar. Onde está o meu chá?"



Levantou os olhos, antes estacionados nas páginas do livro, e percebeu o copo com chá gelado sobre o pires em cima da mesa lateral. O copo já derretia de suor. Ana Tereza nem reparou quando o trouxeram. Fechou o livro e o colocou na mesa. Pegou o chá de camomila sem açúcar, forte e perfumoso, e o bebeu lentamente, se deliciando, gole a gole, enquanto seguia o voo de uma andorinha através das lentes. Devolveu o copo vazio ao pires, procurou o relógio na parede. A hora já marcava a iminência de algum agito. Em breve a casa se alçaria à sua efervescência. Era hora de fechar-se no escritório para continuar os trabalhos: escrever e escrever e escrever um pouco mais. A escrita a esperava, sedenta, pois ainda faltava o principal: o final da história. Na sequência, a aventura maior estaria por vir, pois se arriscara, transgredira-se. Estava ansiosamente desejosa por saber se o público infanto-juvenil a aprovaria.



Pegou a bengala que se encontrava apoiada no braço da poltrona, levantou-se de vagar para não perder o equilíbrio, e moveu-se cautelosa, mas determinada, até o escritório. Era preciso tomar rumo antes que algum dos seus (filhos, noras, netos, bisnetos, empregada e cão) quisesse zanzar em torno dela para supri-la de atenção ao primeiro suspiro. De tarde, depois da sesta e já com o trabalho cumprido, eles poderiam mimá-la à vontade. Ana Tereza apreciava os momentos das histórias contadas de parte a parte, sempre tão recheadas de carinho, enquanto aguardava a sua velhice chegar. Sem pressa.













sexta-feira, 6 de março de 2015

Chope



“Topas tomar um chope no bar da turma?”
“Ok. Saio do trabalho um pouco depois das 18h e pelas 19 estarei chegando.”
Foi de um jeito tranquilo assim que Sandra Madalena aceitou o convite e combinou com o antigo colega, lá dos tempos escolares, para um ‘happy hour’. A turma dos cinquentões remanescentes do colégio se encontra mensalmente num boteco, o bar da turma, para viverem os resquícios de suas adolescências e rirem de si mesmos, quando não seja para oferecer o ombro amigo. Eventualmente ocorrem chopes no paralelo em função de afinidades, como eventualmente também acontece de acabar em namoro um que outro encontro a tornar-se assíduo, embora não seja comum. Para Sandra Madalena este encontro não prometia mais do que um chope e um punhado de conversa jogada fora, enquanto aguardassem a próxima reunião da turma.
Sentados ao ar livre em pequena mesa, entre muitas outras, com os canecos transbordando de chope, o papo começou enrolado.
“Estou muito deprimido, meu casamento acabou de vez, não tem mais chance.”
No entanto, a fisionomia do sujeito amigo não dizia de tamanha tristeza.
“Tenho estado muito só, fico enfurnado em casa a vida toda, trabalho de lá mesmo, pois posso resolver tudo através da internet.”
Engraçado, pensou Sandra Madalena, no último mês ele estava bem faceiro no encontro da turma e, além do mais, quem está muito deprimido tem dificuldade de resolver 'tudo', quer seja no escritório ou em casa, quer seja pessoal ou virtualmente. Hum, acho que o assunto vai desandar.
“As pessoas precisam de amigos, de companhia, de distração.” Silêncio. Ele sorriu timidamente, olhou nos olhos dela e perguntou. “Tu sabes por que te convidei para a gente se encontrar, não sabes?”
“Não.”
“Sabe sim.” O olhar mudou.
“Não, não sei. Porque estavas deprimido, eu suponho.”
“Porque eu quero fazer sexo contigo.”
“Ah!”
“Eu estou sozinho, tu és uma pessoa sozinha, e sexo é bom para o corpo e ajuda a gente a ficar com cabeça boa. Eleva o astral.”
“Ah!”
“E fazer sexo com alguém amigo sempre é mais seguro.”
“Ah!”
“Sabe, eu já tive fantasias sexuais contigo.”
“Ah... É mesmo? Que coisa!!!”
O olhar dele brilhava, dava sinais de mal conseguir esperar pela resposta. Afirmativa, naturalmente, pensava ela. Sandra Madalena custou a reagir, mas quando tomou a decisão, foi rápida e ágil. Com a mão esquerda passou a deslizar os dedos por entre os cabelos escassos do amigo a emaranhá-los. Com a mão direita buscou os botões da camisa desabotoando-os ali mesmo. Desajeitado ele procurou conter as mãos arteiras, pois não era no bar que elas deveriam trabalhar. No entanto, as mãos de Sandra Madalena pareciam malabaristas, escorregaram da contenção e, afoitas, procuraram a bragueta das calças do amigo. O sorriso dele desapareceu instantaneamente, o sangue subiu às bochechas e o suor verteu da testa como cachoeira. Sandra Madalena começou a suspirar baixinho. Revirou os olhos e os fechou, ainda com os braços jogados sobre ele, tocando-o no peito e nas coxas, embora ele procurasse, desesperadamente, a discrição que ela fazia questão de evitar.
Sandra Madalena abriu os olhos, recolheu mãos e braços e os restringiu ao espaço que os bons modos determinam.
“Tu disseste que querias fazer sexo comigo, mas tu não sabes nem brincar!!! Não vai dar, não quero não.”
Levantou-se calma e sem mais palavras, virou as costas e foi-se embora.
Com o espírito leve, ela dizia a si mesma, “o que será que ele estava pensando, heim?”




segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Lua, oh lua



       
 Debruçado à janela do sexto andar, o velho homem encontrava-se completamente hipnotizado olhando a lua. Pintada de dourado, e não de prateado como de costume, a lua estava belíssima e sedutora. A musa colada ao céu enegrecido, perto do horizonte encostado no mar, estava lá, postada com singeleza diante dos seus olhos. A danada deixava seu brilho irrefletidamente refletido sobre as águas calmas, mas dançantes, e provocava-lhe suspiros e arrepios e um leve lacrimejar. Com pequeno rasgo na base, revelando a ausência de uma parte roubada, a lua quase cheia, quase perfeita, atordoava seus sentidos e emoções.


Ele amava a lua. Ah, se amava! Acima de tudo, ele amava a lua. Sim, ele também amava as estrelas, ausentes nesta noite, mas eram amores diferentes. A lua era única, era o amor maior, indescritível, que o enternecia e o fazia melhor - um poeta de alma. Já as estrelas eram muitas, espevitadas, eram amores voluptuosos, alegres e frívolos. Elas mexiam com seu lado maroto, inconsequente, mesmo hoje no topo de seus setenta e alguns anos. Mas, a verdade verdadeira, é que somente a lua tirava dele os mais profundos e apaixonados suspiros.


O velho homem amparou o rosto com as mãos após fincar os cotovelos ao peitoril, e fechou os olhos para sentir a lua. Sentiu seu perfume, aquele inebriante cheiro suave e melodioso que só a lua conseguia exalar. E, na velocidade do pensamente ele viajou abduzido para uma de suas crateras de areias finas. Caiu deitado e rolou e rolou e rolou, parando esparramado no solo macio da lua, sem fôlego de prazer, completamente entregue. Abriu lentamente os olhos. Sorriu. Com suas grandes mãos, como se carinho fosse, pegava delicadamente os finos grãos deixando-os escorrer entre os dedos nodosos. Ele sentia-se feliz. Tão feliz, que após se perder do tempo, se levantou calmo e resoluto. Ele se purificaria para a lua. Ela merecia a sua regeneração.


Com as duas mãos, alternando-as, ele puxou pela boca as mentiras que viviam no seu âmago. Uma a uma, as mentiras que o preenchiam iam sendo extraídas e colocadas ao chão. O monte de mentiras crescia, na mesma proporção em que ele esvaziava. O monte ficou muito alto, e ele completamente oco. Mas, feliz por se livrar de tantas sujeiras. Porém ele ainda não estava pronto, faltava liberar-se de outras coisas mais. Desabotoou lentamente um de seus infindáveis personagens e o colocou ao solo, do outro lado de si. E assim procedeu desvestindo-se das camadas e mais camadas de personagens com as quais representou o seu teatro ao longo da existência. Reviu velhos personagens mal lembrados, mas de boas atuações no passado, bem descoloridos e mofados como decorrência do desuso. A montanha dos personagens aumentava a empatar com o monte das mentiras.


Desnudo dos personagens e vazio das mentiras, o velho homem se olhou orgulhoso, envaidecido pelo despojo. E pela coragem. Ele estava limpo. Novinho em folha. E translúcido! Incolor e inodoro? E inútil? Sentiu-se estremecer. Ficou desconfortável. Nervoso. No que ele havia se transformado? Em um grandessíssimo nada? Por que, mesmo, propunha-se deixar de ser quem sempre fora? Hã? Procurando-se novamente com o olhar voltado sobre o vazio de si mesmo, e enxergando somente os dois montes de história descascada e extirpada, atônito, o homem congelou em sua incredulidade. Vagarosamente o sangue começou a rodar e a percorrer e a congestionar. Pois, antes que a ira o fizesse perder a cabeça, que nem mais sabia onde estava, vestiu-se apressadamente com os personagens deixados ao lado. Aquecido pelas roupagens, nutriu-se vorazmente das mentiras jogadas ao chão. Revigorado através de seus pertences, aleatoriamente colocados em nova ordem, soube-se capaz de recriar sua existência em renovados capítulos, inventando histórias de amores, de traições, de amizades; vivendo fantasias e redesenhando enganos, mentiras e, inclusive, verdades, por que não?

Apaixonado pela lua, mas já com frio por causa da brisa gelada vinda do mar, abriu os olhos de vagar, fechou a janela com jeito e foi-se deitar. Com a cabeça sobre o alto travesseiro, metido entre os surrados lençóis impregnados do próprio cheiro, vagando entre devaneios até ser agarrado pelo sono, ainda recordou saudoso. Lamurioso. "Eu a amei tanto, e ela não entendeu, não entendeu nada. E me abandonou... Sim, é verdade, eu também amei outras mulheres, mas era diferente. Ela foi única, foi o meu grande e melhor amor. Meu verdadeiro amor. As outras haviam sido somente amores de passa tempo, não eram importantes para mim, não eram... Eu a amei tanto... E ela não entendeu! Não... Não entendeu..." 


Assim, mais uma vez sozinho, ele dormiu.


quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Problema com meus olhos


Pronto, acabei de marcar consulta com o oftalmologista. Não aguento mais o comportamento dos meus olhos. Os sintomas indicam que deve ser um problemão, e dos graves, mas vou tratar direitinho conforme o médico mandar. Com certeza terei de botar colírio e, quem sabe, tomar algum anti-inflamatório, isso se não tiver de usar logo um antibiótico. Pode ser que o doutor indique repouso aos olhos, alguns dias no escurinho ou ficar sem leituras e televisão. Ou, ainda, alternativas piores que eu não quero nem imaginar.

Estou impressionada comigo mesma, não sei como levei tanto tempo para tomar essa providência, ligar para o oftalmologista, pois esse mal é história antiga, me persegue há muitos anos! Pensando bem, desde que eu me entendo por gente. Mas o importante agora é que meus olhos fiquem bons, e de uma vez por todas.  Eu acredito que, com um adequado tratamento levado à risca, somado a ajuda dos santos, pois vou rezar a eles também, eu reverta o caso crônico e consiga levar uma vida normal.

Como? O que tem meus olhos? Não, não é dificuldade com a visão, eu enxergo bem, tanto de longe quanto de perto. A questão é outra. O que acontece com os meus olhos é que eles estão sempre desaguando. Se eu estiver triste, lá estarão eles desaguando numa corredeira sem fim. Todos dizem que é normal isso acontecer, e eu sempre acreditei que os olhos poderiam até jorrar, mas diante das tristezas. Inclusive, muitas vezes vi isso acontecer e achei normal. Porém, quando estou feliz, meus olhos também deságuam, só que de um modo diferente, escorrem de forma intermitente. Amigos insistem em dizer que isso pode acontecer sem que o fato represente problema, e me consolam reafirmando que eu não devo me preocupar. No entanto, se eu estiver apenas cansada, lá estarão meus olhos a desaguarem novamente, escorrendo de mansinho, mas escorrendo, e escorrendo quietinhos, num queixume só. E mais, quando fico braba, aí então, meus olhos deságuam em profusão como cachoeira em tempos de cheia, é uma loucura. Ah, e quando estou amando? Aí sim, a situação se complica mais ainda, e o problema se agrava com os olhos desaguando toda hora e em qualquer lugar, provocados por cenas simples como a de um pássaro voando a céu aberto ou por uma palavra expelida desajeitadamente me arranhando como lixa fina.  E tem mais. Quando saio vitoriosa de algum empreendimento ou obstáculo, ou atinjo algum objetivo, lá estão meus olhos encharcados, desaguando aos pulinhos. Pior é quando eu sinto dor. Nem gosto de comentar, é um exagero.

Sim, eu enxergo bem, mas os olhos deságuam demais. Enfim, já marquei consulta com o oftalmologista! Não aguento mais.