quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Problema com meus olhos


Pronto, acabei de marcar consulta com o oftalmologista. Não aguento mais o comportamento dos meus olhos. Os sintomas indicam que deve ser um problemão, e dos graves, mas vou tratar direitinho conforme o médico mandar. Com certeza terei de botar colírio e, quem sabe, tomar algum anti-inflamatório, isso se não tiver de usar logo um antibiótico. Pode ser que o doutor indique repouso aos olhos, alguns dias no escurinho ou ficar sem leituras e televisão. Ou, ainda, alternativas piores que eu não quero nem imaginar.

Estou impressionada comigo mesma, não sei como levei tanto tempo para tomar essa providência, ligar para o oftalmologista, pois esse mal é história antiga, me persegue há muitos anos! Pensando bem, desde que eu me entendo por gente. Mas o importante agora é que meus olhos fiquem bons, e de uma vez por todas.  Eu acredito que, com um adequado tratamento levado à risca, somado a ajuda dos santos, pois vou rezar a eles também, eu reverta o caso crônico e consiga levar uma vida normal.

Como? O que tem meus olhos? Não, não é dificuldade com a visão, eu enxergo bem, tanto de longe quanto de perto. A questão é outra. O que acontece com os meus olhos é que eles estão sempre desaguando. Se eu estiver triste, lá estarão eles desaguando numa corredeira sem fim. Todos dizem que é normal isso acontecer, e eu sempre acreditei que os olhos poderiam até jorrar, mas diante das tristezas. Inclusive, muitas vezes vi isso acontecer e achei normal. Porém, quando estou feliz, meus olhos também deságuam, só que de um modo diferente, escorrem de forma intermitente. Amigos insistem em dizer que isso pode acontecer sem que o fato represente problema, e me consolam reafirmando que eu não devo me preocupar. No entanto, se eu estiver apenas cansada, lá estarão meus olhos a desaguarem novamente, escorrendo de mansinho, mas escorrendo, e escorrendo quietinhos, num queixume só. E mais, quando fico braba, aí então, meus olhos deságuam em profusão como cachoeira em tempos de cheia, é uma loucura. Ah, e quando estou amando? Aí sim, a situação se complica mais ainda, e o problema se agrava com os olhos desaguando toda hora e em qualquer lugar, provocados por cenas simples como a de um pássaro voando a céu aberto ou por uma palavra expelida desajeitadamente me arranhando como lixa fina.  E tem mais. Quando saio vitoriosa de algum empreendimento ou obstáculo, ou atinjo algum objetivo, lá estão meus olhos encharcados, desaguando aos pulinhos. Pior é quando eu sinto dor. Nem gosto de comentar, é um exagero.

Sim, eu enxergo bem, mas os olhos deságuam demais. Enfim, já marquei consulta com o oftalmologista! Não aguento mais.


sábado, 10 de janeiro de 2015

Final de uma tarde de verão em Porto Alegre


A muito gorda e grande nuvem encrespou a cara, pintou o corpo de cinza chumbo com matizes arroxeados, e parou pesada, bem sentada, sobre os telhados e nossas cabeças. Diabólica, em apenas um instante, fez do dia um grande breu. Olhando para baixo com tenebrosas intenções, rindo-se do corre-corre e do tumulto gerado, lentamente se remexeu para lá e para cá, alterou forma e pregas e, qual uma dança invocando espíritos, convocou a ação dos ventos.

Prontamente, como parte de um script ensaiado, o sopro dos ventos uivou enfurecido, violento, e açoitou com um único e interminável fôlego tudo o que viu pela frente. Os ventos raivosos, destemidos, sarcásticos e completamente transgressivos, empurraram e derrubaram, e também fizeram voar, o que estava no caminho.

Corri às janelas, fechei-as apesar do calor, estava assustada diante do inesperado. A nuvem e os ventos ameaçadores - era uma questão de pouco tempo -, o temporal se armava e chegaria logo. Mas ainda era o vento enlouquecido que soprava e empurrava. E empurrava tudo, ostensivamente tudo. De repente os grossos e ágeis pingos da chuva, antes anunciados, se jogaram desesperadamente sobre a cidade feito um dilúvio. A iminência de trovões e raios não se concretizou, pois certamente os ventos os levaram a rugir e incendiar adiante, em outras paragens. Diante do caos a energia elétrica se desativou. Fui à janela e olhei através dos vidros. Sim, era o caos!

Oh céus! Isso realmente é o caos, é o fim do mundo, exclamei para mim mesma. Nesse momento foi quando percebi que o meu prédio fora empurrado e estava acomodado no terreno do vizinho, quase encostando ao prédio do lado que, por sua vez, parecia levemente debruçado sobre, oh céus, sobre o meu carro estacionado, agora, de pernas para o ar sobre a calçada!



sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Singularidade


Um dia a menina foi ao colégio e estudou e distinguiu-se. E identificou-se singular. Uma singularidade social, uma singularidade solidária, uma singularidade em meio a outros seres singulares. E entendeu que sua singularidade somada às outras singularidades a fazia plural, coletiva, interativa, sem nunca perder a singularidade tão genuína, própria de si, e que a fazia ser exclusivamente única e insubstituível. E amada por mim.

Um dia, porém, ela quis casar. Teve cuidados e foi cautelosa; parecia que nem tanto, mas efetivamente queria casar. Assim, quando ela assinou o contrato de união estável, ainda nos últimos anos do século passado, dois seres singulares se uniram em busca de novas perspectivas e aventuras.

Independente, moderna, autônoma e com personalidade marcante, a menina transformada em mulher adulta - adulta de meia idade - casou. Quando casou a mulher reluziu e desejou construir um “nós”, e conquistando-se a partir de um novo viés, incorporando-se àquela pluralidade, constituiu família. Feliz, investindo na vida conjugal, viveu o sonho de ver a família aumentar em singularidades e compartilhar com o coletivo em pleno exercício desta pluralidade.

Depois de anos que eu não a via, cruzei-me com a mulher, a antiga e adorável amiga dos tempos em que curtíamos nossas singularidades em prol do coletivo e trabalhávamos nossa inserção ao mundo plural.

Conversamos, lembramos e conversamos; trocamos mensagens. Marcamos reencontro e conversamos algumas vezes mais. Em todas as oportunidades eu desejei muito encontrá-la de fato, e me empenhei. Procurei incessantemente pela mulher independente, moderna, autônoma e com personalidade marcante. Procurei-a com cautela, paciência e persistência; inclusive, lancei mão de estratégias. Procurei por ela com ansiedade, incredulidade e, até, com desespero.


Mas, nada, não encontrei nem resquícios da singularidade que eu tanto amava e admirava. Inexistia o ser individual, pois a sua individualidade, hoje, era o resultado do somatório da sua antiga singularidade com a singularidade do outro. A amiga perdeu-se de si, abandonou o próprio brilho para se misturar e se confundir com o outro e se transformar em um “nós” permanente e impessoal. Ela só se referia a ela mesma como “nós”. Deixou de ser a mulher singular para ser plural como casal, no singular. Deixou de existir na riqueza de seu próprio Eu, para ser apenas um mingau.