O sorriso ele perdeu já faz algum tempo. As agruras da vida o fizeram ficar mais duro, cético, um tanto empobrecido. Sua inocência e seus sonhos quase infantis ficaram ao longo da caminhada de adulto, tantas foram as decepções do coração e as “guampas” daquela que teria sido a sua grande escolha de amor. As fantasias e projetos de vida, coloridos, construídos na adolescência, não circulavam mais em palavras, pensamentos, nem nas suas ações. Menos ainda em seu sorriso, agora totalmente ausente.
O sorriso de Fabrício fora substituído por largas gargalhadas barulhentas. E essas estavam sempre soltas, até muito mais presentes e intensas do que aquele antigo e meigo sorriso de outrora. Nada passava despercebido. Qualquer coisa fora do lugar já se tornava ridículo o suficiente para que soltasse a estrondosa risada. Gargalhava de tudo o que via ou fazia, sempre dando a impressão de que se tratava de alguma extravagância. As risadas fáceis e ruidosas para quem pouco o conhecia, eram contagiantes, e faziam com que toda a gente por perto sentisse uma vontade irresistível de rir também. Ao barulho da música, sua companhia era bem vinda e sua presença enchia os ambientes, às vezes além da conta. Tão diferente da acolhida dos tempos de mocidade, na qual era igualmente bem vindo, porém decorrente da paz e harmonia que transmitia no sorriso calmo e sincero.
No entanto, quando os ruídos diminuíam, Fabrício parecia se desligar de tudo, e na intimidade perdia-se o seu sinal. Parecia que a tristeza descia, a esperança sumia, e a pessoa dele se apagava. Às vezes, ainda tentava esconder-se atrás do esforço ao riso fácil, mas na proximidade de uma relação ele não conseguia convencer. O homem sumia.
Não que a vida pregressa de Fabrício tivesse sido um mar de rosas. Na infância e adolescência dividia o pouco que seus pais podiam pôr em casa com uma penca de irmãos. As roupas que vestia na época de guri eram as que não serviam mais em seus irmãos mais velhos. Na mesa, a comida era do tipo de quartel: boa, mas sem nenhuma sofisticação nem muita variação. Sobremesa era apenas aos domingos, e sempre uma minguada porção de gelatina bem diluída, com o objetivo de render ao máximo. O pai era homem impaciente, severo, e exigente. Mas cumpria com suas obrigações: trazia direito o dinheiro para casa. A mãe uma boa dona de casa, sobrecarregada com seus afazeres domésticos, era muito amorosa à sua prole. A vida transcorria normal. Mesmo sem muitos brinquedos, os próprios irmãos se ocupavam de preencher esta lacuna, brincavam todos juntos, correndo ou se escondendo entre eles. Fabrício sentia-se feliz, sorria tímido, mas com satisfação pela vida que levava. Quando o sorriso se fazia, expandia-se até o olhar e ele brilhava.
Na época em que começou a por barba na cara, surgiram seus primeiros amores. No início, ainda um pouco tímido, agradava as meninas com suas aptidões esportivas, se destacando em diversas modalidades na escola. Depois, provido de alguns atrativos físicos, era bem apessoado, teve o ibope em boa cotação. Apaixonou-se por uma colega de sala de aula. Enrolou, enrolou e enrolou, até que começaram a namorar, “Ah! Como o amor é belo”. Fizeram muitos planos, casariam virgens, os dois. Teriam filhos, tornar-se-iam ricos, pelo menos um pouquinho, comprariam uma casa, um carro e, quem sabe, viajariam para o Nordeste, Buenos Aires e, quiçá, aos Estados Unidos. Como ele foi feliz neste tempo. Mas, até hoje não sabe explicar como a chama encantada pelo primeiro amor apagou-se dentro dele. O namoro iniciado no colégio durou até parte da faculdade. Mas rendeu um bom aprendizado. Lamentou! Lamentaram! Sem mágoas, mas com alguma tristeza, cada um foi para o seu lado procurar sua cara metade. Haviam eles se equivocado em seus sonhos amorosos?
Teve alguns romances, nada de muito importante. Ganhou autoconfiança, amadureceu, estabeleceu-se profissionalmente, manteve um ou outro amigo do tempo de colégio, e criou círculo de amigos mais estável. Sentia-se feliz. Às vezes mais, às vezes menos, mas sentia-se feliz! Era fácil ver sua felicidade: o sorriso tranqüilo estampado na cara era a sua marca registrada, desde criança. Seu sorriso era calmo, aberto, um pouco tímido, mas, inevitavelmente, fazia sempre brilhar seus olhos marrons escuros.
Já estava na idade, mas ainda não estava preocupado. Foi quando aconteceu o previsível. Foi arrebatado por uma paixão fulminante. Encontrou aquela com quem repartiria a vida e os sonhos. Tropeçou na mulher reservada pelo destino à sua felicidade. Ela não era nenhuma grande beldade, não tinha nenhuma grande virtude, mas era maravilhosa, mexia com ele da raiz do cabelo até o dedão do pé. Fazia com que o mundo parecesse um grande parque de diversões. Ao seu lado tudo se tornava mágico, encantado, e repleto de fantasia. Fabrício estava perdidamente apaixonado.
Em menos de quatro meses já estava casado. E muito feliz. Sorria pelos cotovelos. Em pouco mais de um ano, ele já era papai. O sonho estava quase completo. Estava irradiando felicidade e distribuindo sorrisos. Não acreditava que alguém pudesse ser mais feliz do que ele. Conservando seu jeito tranqüilo, ainda um pouco tímido, sorria encantado e encantadoramente. Viu o rebento fazer um aninho, dar os primeiros passos e balbuciar “papa”.
Sem aviso prévio, o sorriso começou apagar. Aparentemente sem motivo, o sorriso escasseou. Os olhos tornaram-se opacos. A cabeça passou a pesar. Sentia dores inexplicáveis na testa e uma sensação estranha de dolorido permanente. Procurou especialistas de tudo quanto era jeito, fez tomografia computadorizada da cabeça, exame de sangue, passou a usar óculos e nada. Acabou deitado em um divã de psicanalista. Foi quando ele quis se matar. Entrou em depressão profunda ao descobrir que seu grande amor amava com ele e com qualquer um. De lá para cá, nunca mais sorriu. Mas estranhamente começou a soltar algumas risadas esquisitas, pareciam vazias e desmotivadas, e quantas vezes de aparência eufórica. Começaram as gargalhadas. A depressão foi controlada com um caminhão de pílulas. Os olhos marrons pareciam ter ficado mais marrons, e olhavam menos nos outros olhos. Mas a boca começou a se arreganhar, a tagarelar e a rir, a rir, a tagarelar, e a arreganhar-se que não parava mais.
Para o divã não teve mais tempo nem bolso. O trabalho que antes conservava certo fascínio passou a representar, unicamente, compromisso assumido da vida adulta, com todo o peso de quem tem de prover o sustento dos seus. As más línguas andaram falando que Fabrício teve dificuldades no sexo, mas nada que a mão não pudesse ajudar. Mas, certo mesmo, é que filhos ele resolveu não ter mais, pois não poderia com mais essa responsabilidade, “a vida sempre tão difícil e com tudo muito caro...”.
A amada, sua quinta maravilha, passou a ser trigésima qualquer coisa, porém Fabrício continuou casado com ela para manter não se sabe bem o quê. A amante de todos, por algum motivo desconhecido, resolveu amá-lo como único, mas só depois de ocorrida a tragédia. E hoje sofre afogada de culpas em meio a aquelas gargalhadas sem graça, procurando ressuscitar algum vestígio do sorriso dele. Aquele sorriso encantador, marca registrada daquele homem que, por vezes, parecia um anjo ou uma doce criança sonhadora.
Atualmente eles vivem em família, trabalhando, fazendo sexo, juntando dinheiro, tirando férias uma vez por ano, e cuidando do filho que cresce. Ele em público sempre gargalhando, rindo teatralmente. Risadas de zombaria e de desprezo. Talvez Fabrício esteja tentando, incansavelmente, exorcizar a tristeza que traz no coração, mas de uma maneira tão triste para aqueles que o conheceram desde guri.
O sorriso do Fabrício, aquele sorriso calmo, cheio de beleza e luz, aquele sorriso amado, ele perdeu, e já faz algum tempo.