segunda-feira, 31 de outubro de 2011

DOM


Quisera ter o dom, que alguns dizem possuir,
De adivinhar sobre mentiras e verdades
A partir de fragmentos de escuta.



terça-feira, 25 de outubro de 2011

HISTÓRIA



A história da história

Conta como foi que aconteceu

Em terras distantes

Um governante bem intencionado

Edificando sua plataforma de ação

Usou palavras de difícil entendimento

E, com um pouquinho de falsidade,

A todos muito prometeu.

Mentirinha sobre mentirinha

O governante cresceu

Fatia em fatia, até a migalhinha

Todo o pão do seu povo comeu.

Mas, a verdade é que ao povo

A grande verdade lhes ofereceu:

“Pobres dessa nação,

Dediquei-lhes a alma, mas...

Devo admitir, fracassei!

A vocês ainda resta à dignidade!

E a mim?? Só o que roubei!”


sábado, 22 de outubro de 2011

Paixão, amor, ódio.


         Casos de amor!
Quantas histórias nós conhecemos que iniciaram com uma paixão arrebatadora e terminaram ressequidas pelo ódio.  Dramas que mantiveram a intensidade do vínculo que une, transformando a paixão-escolha em ódio-aprisionamento, matando sentimentos e seres até o último suspiro de seus protagonistas.
Romances e versões particularizadas, episódios de vida que talvez possam ser escritas, em síntese, mais ou menos assim:
Contra ou a favor do destino, um dia duas pessoas desejam-se e buscam-se para o relacionamento amoroso. Querem-se na totalidade de seus seres e apaixonam-se perdidamente. Acreditam-se atendidas em suas idealizações, e vêem-se amando e sendo amadas. Sentem-se fundidas no sexo e na vida em complementaridade absoluta. Tudo perfeito conforme o roteiro sonhado. Porém, dormindo na rotina da vida cotidiana, os pesadelos aparecem e aterrorizam. E na seqüência interminável dos dias, os amados-amadores-amantes tornam-se gradativamente expostos pela convivência, deixando-se descortinar. E, assim, revelam todo o tipo de limitação próprio dos seres humanos.
As frustrações, decorrentes da supremacia da realidade sobre os sonhos, prevalecem. As pessoas têm que se deparar com os seus vazios e com o não preenchimento deles pela presença do ser amado; agora um alguém reconhecidamente falho e pequeno. Neste momento nasce e vigora o ressentimento: a pessoa amada traiu, enganou. Fez-se melhor aos olhos de quem o amava. Fez-lhe acreditar na magia e na plenitude do amor. Um amor-salvação, capaz de suplantar e curar todas as dores sofridas durante uma vida inteira até ali.
Decepções. Reação. Entre as respostas de defesa contra a dor dilacerante da perda de um grande e poderoso sonho de amor, o destaque é o comportamento de projeção de culpas. Iniciam-se os ataques. A conseqüência da sucessão de agressões ao relacionamento é a destruição da frágil estrutura do amor. Os amantes julgando-se agredidos e mal tratados dentro do relacionamento germinam o ódio, unilateral ou bilateralmente. E este sentimento, tão intenso quanto parecia ser o amor, é construído proporcionalmente ao tamanho das idealizações. E na impossibilidade de sobreviver à iminência de um abandono, resultar-se totalmente esvaziado pelo outro, há amantes que se acorrentam obsessivamente aos presumíveis algozes por um ódio profundo, numa condenação à infelicidade eterna a ambos. Se um não pode ser feliz, os dois não o serão! Para essa desilusão não há perdão.
 Uma interpretação entre outras possíveis.
Pensadores, cientistas, estudiosos, terapeutas, metidos e interessados também buscam entender as histórias de amor que transitam da paixão em direção ao ódio. Nobres saberes e saberes populares já discutiram,  levantaram hipóteses, teses, e criaram teorias sobre os relacionamentos amorosos, e continuam a fazê-lo em busca de esclarecimentos e melhores perspectivas a futuros investidores do amor.  Não há consenso nas explicações, mas há concordância sobre o lamentável desfecho que ninguém gostaria para si.
Discorrer sobre temas como amor, ódio, separação, morte, vínculos afetivos, fidelidade, relacionamento amoroso é sempre desafiante. Desafio que assumo para meus novos artigos. Aguardem!

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

SIM, AMEI MUITO!


Amei...
Sim, amei muito!
Amei um alguém que não era, nem para si mesmo.
Acreditei no amor que pulsava em mim:
sonhei com a materialidade do amor e na capacidade de construção,
desejei que amando nos transformássemos e nos fortalecêssemos.
Errei?
Amei...
Sim, amei muito!
Meu imenso amor brotava, escorria, nos envolvia.
Meu amor transbordava de mim esfuziante na direção de um alguém.
Acreditei no encantamento do amor porque eu amava.
E fui feliz o tempo todo em que eu amei,
mesmo amando um alguém que não era,
um alguém que não se sabia senão apenas sendo amado.
Errei?
Amei...
Sim, amei muito!
Amei um alguém com a abundância do amor como sangue,
correndo e percorrendo todos os cantos do meu corpo e do meu ser.
Não sei como, nem o porquê elegi um alguém para ser o meu amor.
Mas quem não era, continuou não sendo, e pouco fez do amor que não conseguiu fazê-lo ser.
Um alguém queria mais, ser muito mais amado. E logo saiu em busca de outros amores. 
Amei sem ser vista, sem ser respeitada, sem ser amada.
Errei?
Amei...
Sim, amei muito!
Amei com o amor que não se esgota em mim, que se alimenta das alegrias e dores e experiências e intensidade do meu viver.
Mas o amor me confundiu quando, um dia, um alguém se foi!   
Gastei todas as minhas lágrimas.
Sofri não ter mais um alguém para amar; e pensei ter perdido o meu amor.
Porém, amando a verdade descobri o amor comigo - aceso, intenso e radiante - voltado para mim, cuidando de mim, me transformando, me construindo e me fortalecendo.
Descobri o meu verdadeiro amor, renascido e revigorado no meu jeito de ser.
Errei?
Amei...
E amo. Sim, amo muito!
E tem quem me pergunte se amo Alguém.
Amo alguém e outros quantos. Amo umbigos - com ou sem o seu alguém. Amo o ser inteiro e as suas partes - isoladas ou no conjunto. Amo quem deseja e se deixa ser amado.
E sigo amando com o amor que me é vida...
Sim, amo muito.
Amando aprendi mais sobre mim, sobre o meu amor e as minhas escolhas.
Se eu tenho Alguém?
Eu amo e amo muito muito.
Quem?
E ainda tem quem me pergunte!

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

LOCUPLETOU


A tela do monitor locupletou-se de letras
Sem dar chance ao papel agonizante,
Pálido e amarrotado, de apelar à tradição.
Pobre papel, lançado ao lixo por pura traição
Caiu no descrédito de algum ser errante
Enquanto ainda tinha o que mostrar.

O monitor faceiro e vaidoso deixou a mostras
Textos, frases e palavras soltas ao léu
Porém, não tardou ver sua vaidade em apuros:
Correu a procurar o papel, dentro, frente e detrás.
Desesperado, prometeu acordo e o céu, e
Confessando dele precisar, propôs rendimento e juros.

Monitor, sem saída, com o papel fez sociedade
Mesmo achando-o ultrapassado, aceitou sua serventia
Entendeu que as letras precisam pelas mãos circular
Tanto quanto pelo espaço internético voar.


As risadas de Fabrício



O sorriso ele perdeu já faz algum tempo. As agruras da vida o fizeram ficar mais duro, cético, um tanto empobrecido. Sua inocência e seus sonhos quase infantis ficaram ao longo da caminhada de adulto, tantas foram as decepções do coração e as “guampas” daquela que teria sido a sua grande escolha de amor. As fantasias e projetos de vida, coloridos, construídos na adolescência, não circulavam mais em palavras, pensamentos, nem nas suas ações. Menos ainda em seu sorriso, agora totalmente ausente.
O sorriso de Fabrício fora substituído por largas gargalhadas barulhentas. E essas estavam sempre soltas, até muito mais presentes e intensas do que aquele antigo e meigo sorriso de outrora. Nada passava despercebido. Qualquer coisa fora do lugar já se tornava ridículo o suficiente para que soltasse a estrondosa risada. Gargalhava de tudo o que via ou fazia, sempre dando a impressão de que se tratava de alguma extravagância. As risadas fáceis e ruidosas para quem pouco o conhecia, eram contagiantes, e faziam com que toda a gente por perto sentisse uma vontade irresistível de rir também. Ao barulho da música, sua companhia era bem vinda e sua presença enchia os ambientes, às vezes além da conta. Tão diferente da acolhida dos tempos de mocidade, na qual era igualmente bem vindo, porém decorrente da paz e harmonia que transmitia no sorriso calmo e sincero.
No entanto, quando os ruídos diminuíam, Fabrício parecia se desligar de tudo, e na intimidade perdia-se o seu sinal. Parecia que a tristeza descia, a esperança sumia, e a pessoa dele se apagava. Às vezes, ainda tentava esconder-se atrás do esforço ao riso fácil, mas na proximidade de uma relação ele não conseguia convencer. O homem sumia.
Não que a vida pregressa de Fabrício tivesse sido um mar de rosas. Na infância e adolescência dividia o pouco que seus pais podiam pôr em casa com uma penca de irmãos. As roupas que vestia na época de guri eram as que não serviam mais em seus irmãos mais velhos. Na mesa, a comida era do tipo de quartel: boa, mas sem nenhuma sofisticação nem muita variação. Sobremesa era apenas aos domingos, e sempre uma minguada porção de gelatina bem diluída, com o objetivo de render ao máximo. O pai era homem impaciente, severo, e exigente. Mas cumpria com suas obrigações: trazia direito o dinheiro para casa. A mãe uma boa dona de casa, sobrecarregada com seus afazeres domésticos, era muito amorosa à sua prole. A vida transcorria normal. Mesmo sem muitos brinquedos, os próprios irmãos se ocupavam de preencher esta lacuna, brincavam todos juntos, correndo ou se escondendo entre eles. Fabrício sentia-se feliz, sorria tímido, mas com satisfação pela vida que levava. Quando o sorriso se fazia, expandia-se até o olhar e ele brilhava.
Na época em que começou a por barba na cara, surgiram seus primeiros amores. No início, ainda um pouco tímido, agradava as meninas com suas aptidões esportivas, se destacando em diversas modalidades na escola. Depois, provido de alguns atrativos físicos, era bem apessoado, teve o ibope em boa cotação. Apaixonou-se por uma colega de sala de aula. Enrolou, enrolou e enrolou, até que começaram a namorar, “Ah! Como o amor é belo”. Fizeram muitos planos, casariam virgens, os dois. Teriam filhos, tornar-se-iam ricos, pelo menos um pouquinho, comprariam uma casa, um carro e, quem sabe, viajariam para o Nordeste, Buenos Aires e, quiçá, aos Estados Unidos. Como ele foi feliz neste tempo. Mas, até hoje não sabe explicar como a chama encantada pelo primeiro amor apagou-se dentro dele. O namoro iniciado no colégio durou até parte da faculdade. Mas rendeu um bom aprendizado. Lamentou! Lamentaram! Sem mágoas, mas com alguma tristeza, cada um foi para o seu lado procurar sua cara metade. Haviam eles se equivocado em seus sonhos amorosos?
Teve alguns romances, nada de muito importante. Ganhou autoconfiança, amadureceu, estabeleceu-se profissionalmente, manteve um ou outro amigo do tempo de colégio, e criou círculo de amigos mais estável. Sentia-se feliz. Às vezes mais, às vezes menos, mas sentia-se feliz! Era fácil ver sua felicidade: o sorriso tranqüilo estampado na cara era a sua marca registrada, desde criança. Seu sorriso era calmo, aberto, um pouco tímido, mas, inevitavelmente, fazia sempre brilhar seus olhos marrons escuros.
Já estava na idade, mas ainda não estava preocupado. Foi quando aconteceu o previsível. Foi arrebatado por uma paixão fulminante. Encontrou aquela com quem repartiria a vida e os sonhos. Tropeçou na mulher reservada pelo destino à sua felicidade. Ela não era nenhuma grande beldade, não tinha nenhuma grande virtude, mas era maravilhosa, mexia com ele da raiz do cabelo até o dedão do pé. Fazia com que o mundo parecesse um grande parque de diversões. Ao seu lado tudo se tornava mágico, encantado, e repleto de fantasia. Fabrício estava perdidamente apaixonado.
Em menos de quatro meses já estava casado. E muito feliz. Sorria pelos cotovelos. Em pouco mais de um ano, ele já era papai. O sonho estava quase completo. Estava irradiando felicidade e distribuindo sorrisos. Não acreditava que alguém pudesse ser mais feliz do que ele. Conservando seu jeito tranqüilo, ainda um pouco tímido, sorria encantado e encantadoramente. Viu o rebento fazer um aninho, dar os primeiros passos e balbuciar “papa”.
Sem aviso prévio, o sorriso começou apagar. Aparentemente sem motivo, o sorriso escasseou. Os olhos tornaram-se opacos. A cabeça passou a pesar. Sentia dores inexplicáveis na testa e uma sensação estranha de dolorido permanente. Procurou especialistas de tudo quanto era jeito, fez tomografia computadorizada da cabeça, exame de sangue, passou a usar óculos e nada. Acabou deitado em um divã de psicanalista. Foi quando ele quis se matar. Entrou em depressão profunda ao descobrir que seu grande amor amava com ele e com qualquer um. De lá para cá, nunca mais sorriu. Mas estranhamente começou a soltar algumas risadas esquisitas, pareciam vazias e desmotivadas, e quantas vezes de aparência eufórica. Começaram as gargalhadas. A depressão foi controlada com um caminhão de pílulas. Os olhos marrons pareciam ter ficado mais marrons, e olhavam menos nos outros olhos. Mas a boca começou a se arreganhar, a tagarelar e a rir, a rir, a tagarelar, e a arreganhar-se que não parava mais.
Para o divã não teve mais tempo nem bolso. O trabalho que antes conservava certo fascínio passou a representar, unicamente, compromisso assumido da vida adulta, com todo o peso de quem tem de prover o sustento dos seus. As más línguas andaram falando que Fabrício teve dificuldades no sexo, mas nada que a mão não pudesse ajudar. Mas, certo mesmo, é que filhos ele resolveu não ter mais, pois não poderia com mais essa responsabilidade, “a vida sempre tão difícil e com tudo muito caro...”.  
A amada, sua quinta maravilha, passou a ser trigésima qualquer coisa, porém Fabrício continuou casado com ela para manter não se sabe bem o quê. A amante de todos, por algum motivo desconhecido, resolveu amá-lo como único, mas só depois de ocorrida a tragédia. E hoje sofre afogada de culpas em meio a aquelas gargalhadas sem graça, procurando ressuscitar algum vestígio do sorriso dele. Aquele sorriso encantador, marca registrada daquele homem que, por vezes, parecia um anjo ou uma doce criança sonhadora.
Atualmente eles vivem em família, trabalhando, fazendo sexo, juntando dinheiro, tirando férias uma vez por ano, e cuidando do filho que cresce. Ele em público sempre gargalhando, rindo teatralmente. Risadas de zombaria e de desprezo. Talvez Fabrício esteja tentando, incansavelmente, exorcizar a tristeza que traz no coração, mas de uma maneira tão triste para aqueles que o conheceram desde guri.
 O sorriso do Fabrício, aquele sorriso calmo, cheio de beleza e luz, aquele sorriso amado, ele perdeu, e já faz algum tempo.



quarta-feira, 5 de outubro de 2011

ONDE ESTÁS?


Procuro os olhos de alguém...

Vejo olhares desaparecendo
Junto a passos ligeiros seguindo
Ruas, caminhos, botequim?

 

Procuro teu verde olhar...

Vejo apagados olhos escurecendo
Como o dia através da noite fugindo
Vidas, destinos, fim?

 

Onde estás? Com quem mais? Aonde vais?
Procuro teus olhos, meu caminho
Nosso destino em carmim. Onde estás?


Vejo olhos passando, olhares cruzando
Sumindo perdidos atrás de mim. Onde estás
Meu brilhante e lindo olhar dos teus olhos?

Sou apenas distraída...


                Aceitei o convite. O casal iria ao aniversário da cunhada da minha amiga. Conheceríamos a família da Vera que, de alguma forma, já nos conhecia de ouvir falar e de ver fotos dos nossos encontros sociais. Seria um churrasco na sexta-feira à noite em uma cidade da grande Porto Alegre. O único detalhe esclarecido pela Vera foi de que não haveria bebida alcoólica na festa. Por mim, tudo bem. Assim não teríamos a preocupação de escolher um para não beber e nos trazer para casa, sãos e salvos.
                Vera e outra amiga foram de carro conosco desde o centro de Porto Alegre. Chegamos alegres e bem falantes. Fui apresentada para a mãe, o irmão, os sobrinhos, a cunhada, a mãe da cunhada, e outro familiar da Vera. Já conhecia uma irmã e seu “namorido” (aos não familiarizados com o termo: meio namorado, meio marido).
Os homens ficaram ao redor da churrasqueira no avarandado atrás da casa; as mulheres conversando numa enorme e aconchegante cozinha, típica de famílias italianas do interior. A conversa fluía ora numa direção, ora em outra, enquanto Vera fazia um suco de abacaxi com gengibre, e a dona da casa cozinhava o aipim e o arroz para complementar os pratos de salada já postos à mesa. Senti-me acolhida e com uma boa sintonia com a aniversariante. Ela, entre outros assuntos, confirmou que estava entrando nos “enta” (40 anos) e que festejava exatamente no dia do seu aniversário. Muito simpática comentou episódios engraçados e típicos ocorridos em família, permitindo-me ficar à vontade.  
                Churrasco pronto, saladas e outros complementos servidos, refrigerante e suco a mesa. Sentamo-nos todos em torno da enorme mesa de mais de 20 lugares colocada no centro da cozinha. Deu-se início aos serviços: a carne estava um espetáculo, e a salada só de pensar, volto a salivar.
                Tudo estava bem. As pessoas ainda comiam quando pedi que me alcançassem a jarra com o suco, pois de tão gostoso queria me servir uma vez mais. A polpa havia subido formando uma grossa camada de abacaxi sobre o caldo. Peguei pela alça da jarra, que fazia parte da tampa, e girei a jarra em duas voltas para mexer. Inesperadamente a tampa se soltou, a jarra virou, e eu fiquei com a alça na mão. Quase todo o líquido derramou sobre mim e o filho da aniversariante sentado ao lado. O suco saltou respingando grossas gotas de polpa de abacaxi nos cabelos escuros do guri, e espalhou-se num vasto lago pelo chão. A mesa e a tábua das carnes também ficaram encharcadas. Apesar de tudo, ainda consegui salvar um finzinho de suco que acabei bebendo no meio da confusão.
                Mesmo envergonhada pelo acidente causado por mim, confesso, no instante do fato, minha maior preocupação era não molhar as botas novas de camurça que usava pela primeira vez. E, dali para diante passei a ser o alvo de todas as atenções e comentários e brincadeiras. Fazer o quê? Essas coisas acontecem, procurei levar a situação na boa e brinquei junto. Lamentei o ocorrido, mas a festa continuou.
                Na sequência cantamos o tradicional “parabéns a você”, além de outras modalidades também cantadas descontraidamente pelos familiares. As velinhas sobre uma das tortas foram apagadas e a alegria estava solta nos movimentos e nas falas de todos. As duas tortas foram servidas, porém comi apenas a torta de bombom. Não consegui provar a de morangos porque já estava para lá de satisfeita, mas a dona da casa, gentilmente, colocou um farto pedaço em uma embalagem para que eu a provasse em casa. Estaria tudo perfeito até ali, se não fosse a bagunça com o suco de abacaxi. Mas a festa continuou.
                E quando o aniversário rumava ao final, tranquilamente, começamos as despedidas. Era o momento certo para expressar o agradecimento pela acolhida, de fazer mais um pedido de desculpas, e de falar sobre o meu grato sentimento de sintonia com a aniversariante. Cheia de palavras e sorrisos, meio abraçada com a aniversariante, falei do desejo que brotava em mim de criarmos outra oportunidade de encontro. Quem sabe nós duas festejássemos juntas nossos aniversários, mesmo sendo eles em datas tão distintas, simplesmente pela afinidade que eu estava sentindo com a dona da festa. Daí, as luzes do meu pensamento  apagaram-se, as idéias evaporaram-se, e eu, sem mais nem por que, perguntei: “Quando é mesmo o teu aniversário?”
                Neste momento todos pararam, olharam para mim com surpresa, e a aniversariante ainda me respondeu: “É hoje!!”
 Naturalmente a balburdia recomeçou, e eu queria sumir. Tentei explicar, mas era tarde demais. Eles ainda não me conheciam, não sabiam destas minhas peculiaridades. Passei por maluca, visto que, logicamente, eu não poderia estar bêbada. Ninguém mais me escutava, e eu gostaria de simplesmente dizer: “Eu sou assim mesmo, sou normal, sou apenas um pouco distraída”.
Nem todos sabem e entendem, mas os distraídos e com déficit de atenção conhecem bem estas características corriqueiras do comportamento, geradoras de pequenos episódios esquisitos. Os distraídos estão sempre no mundo da lua, e não é só na hora de estudar, não. Comumente são pessoas inteligentes, criativas, e sujeitas ao sucesso, principalmente quando vencem a baixa auto-estima decorrente das ciladas do desligamento. A desatenção incompreendida pode desencadear sentimentos de tristeza, vergonha e sensação de inadequação para a própria pessoa, assim como provocar sentimentos de estranheza e, até, de indignação por parte dos outros. Então, ao nos descobrirmos assim, distraídos, devemos acolher e esclarecer esse nosso jeito como “mais um jeito normal de ser”. Dessa forma estaremos abrindo novas e saudáveis perspectivas a nós e aos que convivem conosco.
Já faz algum tempo que aprendi não me martirizar nem me encolher por ser tão aérea. Aprendi conviver com minha distração me perdoando e me divertindo com minhas pequenas atrapalhadas - que são, sempre, muito pequenas. Assim sendo, neste dia, não tive outra saída se não rir de mim por mais esta situação embaraçosa em que me meti. E,  no carro enquanto percorríamos a chuvosa estrada de volta a Porto Alegre, comigo riam mais três.