quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Sem fim

Tudo começou quando, um dia, ela olhou para mim sorrindo e disse para eu chamá-la de avó! Se ela brincava, eu não sei, mas daquele momento em diante passei a chamar a d. Groselha de vovó. Eu não tinha 10 anos ainda.

Eu gostava da vovó Groselha, ela era muito carinhosa e cuidava bem de mim em muitas ocasiões em que a minha mãe trabalhava, mas às vezes ela era quieta, distante e parecia ter pouca paciência ao não responder as pessoas e suspirar profundo por qualquer coisa. Ela era um pouco velha, mas não muito.

Sempre soube que vovó Groselha era muito braba, mas foram poucas as vezes que a vi furiosa. Ainda bem, porque era de dar medo. Nessas ocasiões ela falava alto, gritava, e por longos minutos. Também gesticulava bastante. Os olhos atrás dos óculos ficavam maiores e meio vermelhos. Ela ficava feia. Quando vovó se acalmava, ela continuava com a cara de braba, só que parava de falar. Aí ficava calada por um tempão.

Vovó Groselha era mais legal do que esquisita. Ela parecia muito certinha, e se vestia sempre fora da moda.  Era bonita quando sorria e conversava comigo. Vovó ficava feliz quando preparava lanches gostosos, mas eu não gostava de ter que lavar a minha louça depois. Ela tinha filhos adultos, pai e mãe bem velhinhos, e uns irmãos que incomodavam e faziam a vovó Groselha chorar mesmo quando eles não apareciam. Eu acho que eles eram maus, mas a vovó dizia que eles eram loucos. Não sei bem, mas um dia eu acredito ter visto a vovó resmungando sozinha, e aí  ela dizia que os irmãos eram viciados.  Na verdade eu só conheci um deles, e esse irmão pintava os cabelos de preto, o que ficava estranho porque não combinava com a cara dele. Ele era agitado e caminhava como se estivesse se escondendo, ele tinha cara de louco, mesmo... Em compensação, vovó Groselha tinha uma irmã bem legal, muito falante e alegre, que vivia numa espécie de zoológico com um monte de animais. A tia Nana morava fora da cidade, mas não muito longe. Ela vinha muitas vezes dar uma força para a vovó Groselha, principalmente depois que a mãe das duas foi para o céu, e deixou o namorado dela, como ela mesma sempre contava, aos cuidados da vovó Groselha e da tia Nana.

 

Pois então, tia Nana sempre fala que tudo começou quando a mãe da vovó Groselha, que era uma velhinha bem velhinha e muito bonita, e simpática e muito feliz, e também o pai, que era um velhinho muito na dele, começaram a ficar doentes. Toda hora um ou o outro, e teve vezes que os dois ao mesmo tempo, tiveram que ir para o hospital. Vovó Groselha corria de um lado  para o outro para cuidar dos pais bem velhinhos, da casa deles, do dinheiro deles e de tudo que era deles. Sozinha, a coitada! Por causa disso ela teve que contratar gente para ajudar. Vovó Groselha vivia nervosa, cansada e com olheiras escuras caídas no meio do rosto. Ela dizia que não conseguia mais ver os amigos, ir à ginástica, e o pior, não lia mais os livros de que tanto gostava. Mas eu sei que cuidar dos seus pais fez com que ela não conseguisse mais trabalhar direito. Não tinha tempo. A sorte é que nessa época ela conseguiu se aposentar, e assim ela não ficou sem dinheiro. Nessa época a minha mãe foi contratada e ajudou a vovó Groselha no cuidado dos pais.

 

Mas minha mãe disse que tudo começou quando a vovó Groselha descobriu que não ia conseguir ter netos, isso porque os filhos dela estavam encalhados. Eles não tinham nem namorada, e assim eles não iam poder casar e ter filhos. A vovó Groselha queria muito ter netos, dava dó de ver como ela queria. As pessoas do condomínio, que gostavam bastante da vovó, acabavam emprestando os seus netos para ela ser, um pouquinho, avó também. Desse jeito ela foi conseguindo ter uma família de netos. Era engraçado como ela ficava contente de ter os netos das vizinhas como seus. Eu sempre soube que as pessoas adotavam crianças quando queriam ter filhos, mas essa foi a primeira vez que eu vi alguém adotando netos. Foi assim que eu também ganhei a vovó Groselha como avó, e por causa disso, de brinde, vieram uns tios emprestados. O filho mais velho da vovó Groselha era um tio bem legal, até me emprestou um computador. Vivia querendo saber dos meus temas do colégio e, volta e meia, mandava eu colocar casaco ao primeiro ventinho que soprava.

 

Foi ele quem me contou que tudo começou quando a vovó decidiu não ter mais marido. Ela teve três casamentos e três filhos, aí decidiu que gostava mais de ficar só com os filhos. Ela nunca falava dos pais dos filhos, e parecia realmente que eles não faziam falta na vida dela.  Vovó Groselha dizia que a casa tinha ficado com gente demais, e como, segundo ela, “não se despacha os filhos”, ela despachou os maridos. Sozinha ela era feliz: trabalhava e inventava coisas para fazer, sorria e dançava, escrevia inspirações, viajava para estudar e para se divertir. Parecia um passarinho livre. Diziam que ela foi tímida na adolescência ou até um pouco depois, mas quem via a vovó nessa época só enxergava uma pessoa cheia de alegrias e realizada. Vovó Groselha me contou que na década dos cincoenta anos ela nunca chorou, que não teve nem meio motivo para ficar triste, que tudo era só felicidade. Parece que ela começou a chorar, e bastante, foi depois que fez sessenta... O que será que aconteceu nesse aniversário?

 

Recentemente, no último aniversário da vovó Groselha, e depois de eu fazer 13 anos, a própria vovó foi quem disse como tudo começou. Ela realmente sabia. Nessa ocasião os filhos dela resolveram fazer uma festinha de aniversário surpresa, e chamaram só  eu e a minha mãe. 

Há alguns anos, quando a mãe e depois o pai da vovó tinham morrido, os irmãos dela, que eram maus, ou loucos ou viciados, continuavam só querendo infernizar a vida dela e dos parentes. Vovó Groselha decidida, então, assinou uns documentos, deixou os filhos se incomodando no lugar dela e fugiu. Sumiu. Por algum tempo ninguém sabia onde ela estava, e se alguém sabia, não contava. Ela foi morar num paraíso no meio do mato, longe de tudo e de todos, mas não muito longe, agora eu sei, porque a gente indo de carro chega lá em menos de duas horas depois de sair de casa.

Chegamos ao esconderijo-paraíso num dia frio, mesmo com o céu sem nuvens e o sol brilhando no alto. Vovó Groselha usava um vestido colorido de mangas compridas e até o meio das canelas, bem soltinho, e com um agasalho de tricô pendurado nos ombros. Ela parecia que esperava pela nossa surpresa. Vovó estava mais velha, mas tão bonita... tão mais bonita do que eu lembrava! O cabelo estava esbranquiçado, comprido e preso para trás, os lábios pintados de um rosa escuro, e um perfume de flores que não sei se era dela ou de tudo em volta. Nesse dia eu descobri que a vovó Groselha tem nome de fruta, e que o suco dessa fruta é maravilhoso. A casa dela era pintada de verde claro e rodeada de limoeiros e laranjeiras, e mesmo não sendo grande, tinha uma varanda linda com redes penduradas.  Na sala cheia de quadros a gente via a cozinha com churrasqueira, o fogão a lenha, e a mesa pronta para o almoço. Tudo arrumadinho de um jeito que era a cara dela, sem ter o que pôr nem o que tirar. Toda feliz ela disse que a gente iria inaugurar a churrasqueira naquele dia.

Ainda com todos nós sentados à mesa, e o último espeto de carne sendo servido aos mais gulosos, em meio a uma falação alegre dos tios, vovó Groselha disse com ar pensativo e um meio sorriso no rosto:  “...e dizer que tudo começou quando eu nasci...”

 

 

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Eu vou contar

Foi assim:

A ideia de cuidar de idosos transitava no pensamento sem foco definido desde o curso de psicologia. Porém, foram os idosos que me chamaram a materializar esse trabalho e a assumir minha missão. Foram os grupos de terceira idade, sedentos por descobrir mais da vida e de sua faixa etária, que me chamaram a palestrar. E para cumprir com responsabilidade às suas solicitações, com gosto eu me aperfeiçoei fazendo o mestrado em gerontologia.

A proposta evoluiu de palestras para o atendimento de idosos em consultório, e logo após para a criação da empresa de cuidadores de idosos. O nome “Rosinhas Cuidadores” foi inspirado na Rosa, gerontóloga, e na minha mãe também Rosa e idosa. Hoje somos todas “Rosinhas”, cuidadoras que se dedicam aos idosos com o máximo de competência profissional e com a amorosa dedicação de filha.

Tínhamos teoria, mas precisávamos construir caminhos. Aprendemos com os desafios e os erros. Fomos persistentes diante dos obstáculos, e tivemos no tempo um bom aliado. Implantamos o nosso jeito de cuidar dos idosos. Desenvolvemos acuidade ao olhar a pessoa na sua integralidade: com sua história de vida valorizada, suas relações afetivas consideradas, seu contexto social, espiritual e emocional como referência, além da atenção ao seu corpo e sua capacidade cognitiva.

Hoje é assim:

Rosinhas Cuidadores desenvolveu sua própria  forma de cuidar, e continua investindo em evolução e aperfeiçoamento. O idoso e seus familiares são nossas prioridades, por isso os cuidadores são acompanhados diariamente nas suas ações com os idosos, recebendo constante supervisão e orientação.

Na coordenação, fazemos a interlocução entre os familiares, os cuidadores e os idosos, visando que os idosos, junto com os seus, reafirmem, reencontrem e/ou ressignifiquem o sentido da vida diante da longevidade alcançada, e a desfrutem da melhor forma possível.

Rosinhas Cuidadores, é o amor que nos move!

 

 

Ser idoso

Prestem atenção!

Ser idoso é diferente de ser criança, mesmo quando a pessoa idosa apresenta um comportamento inseguro, indefeso, dependente e carente.

Ser idoso é diferente de ser adulto jovem ou de meia idade, porque a pessoa idosa já cumpriu com suas obrigações de subsistência, social e de produtividade.

Ser idoso é estar diante de uma nova etapa de vida, desconhecida e desafiadora. É trazer na bagagem muitos acertos mas também infinitos erros, e apesar de todos os equívocos, ser digno de respeito, amor, perdão e compaixão, e se não por outros motivos, por desbravar caminhos e abrir perspectivas às nossas vidas futuras.

Observem.

Ser idoso é emprestar-se aos mais jovens como exemplo a ser seguido e aperfeiçoado, ou como referência a ser modificada e superada.

Cuidem.

Não julguem os seus idosos diante de suas imperfeições e a revelia de seu contexto histórico, façam melhor no trilhar de suas vidas.

Sejam melhores!

quarta-feira, 12 de maio de 2021

Não, não é...

 

Não, não é dor. É uma tristeza inexplicável que circula na corrente sanguínea; uma tristeza bombeada por um coração triste a espalhar essa tristeza aos recônditos pontos do meu corpo, do meu ser. Inclusive, contaminando o meu cérebro tão capaz e abalando-o na sua estrutura. Mesmo ele que sabe das coisas e entende, ele que já me confortou infinitas vezes, e que, desta,  acolheu e até desejou que os acontecimentos tivessem o  desfecho que tiveram, pois era certo de que não havia perspectiva melhor.

Não, não é dor, é só uma tristeza inexplicável que domina meu coração, e que o faz chorar como um bebê faminto, aos berros e desconsolável. Hoje o meu coração triste não escuta ponderações, não quer saber da lógica da vida. Ele, debulhado em lágrimas, quer apenas as lembranças do amor de mãe em abraços quentinhos e beijos docinhos...

Ah, mãe!!! Como está difícil ter presente a tua ausência fazendo aniversário. Eu sei que tu estás e sempre estarás em mim, mas sinto muita-muita saudade de te ter em ti... comigo.