Tonico trabalhou a semana
abaixo de mau tempo. Saiu da empresa, dia após dia, depois do expediente. As
horas naquele cubículo, denominado pelos otimistas de escritório, transcorriam atoladas,
e ele, ainda mais atolado, estava sempre com a cara metida em pastas, documentos
e na execução de relatórios. Os problemas não acabavam, mas o pobre do Tonico
já definhava.
Sexta-feira chegou anunciando
a folga merecida, ainda assim, saiu do escritório tarde da noite. Alquebrado, mal
conseguindo dar conta de si, arrastou o corpo pelas ruas até o estacionamento.
O vento gelado bafejava o rosto. Completamente destruído, e com frio, decidiu
passar rápido por casa e seguir direto à piscina térmica do condomínio para um
mergulho light. Extenuado, não conseguiu ficar na piscina, logo pulou para a
banheira de hidromassagem. E lá ficou se derretendo e cochilando até murchar
todinho. Relaxou.
Enrolou-se na toalha e
foi à ducha. Mais animado, Tonico cantarolava enquanto se ensaboava e se
divertia com a profusão de espuma produzida. Perdeu-se na brincadeira em baixo
do chuveiro, como criança. Pensou: depois do banho encho a pança, tomo uma
cachaça com limão e durmo com os anjos.
Secou-se. Envolto na
toalha molhada, Tonico procurou a mochila com as roupas limpas para vestir após o
banho. Não a encontrou. Estava tão cansado que nem lembrava onde pusera a
sacola. Costumava deixar por cima, mas poderia ter deixado no armário. Ah, sim,
o armário. Lembrou, deixou tudo no armário. Sim, ali estava o armário com o seu
cadeado, trancado. E a chave do cadeado? Não, não poderia ter fechado o cadeado
com as chaves, todas as suas chaves, dentro do armário. Ou poderia? Sim, sim,
poderia. E ele o fez. Não tinha dúvidas.
Estava sem roupas para
vestir e sem possibilidade de entrar em casa, e o relógio já deveria ter girado
a invadir o sábado. Gritar seria uma saída - uma péssima saída! Se o escutassem
ainda receberia multa por desrespeito ao horário de silêncio. Tocar na casa de algum
vizinho, àquela hora e naqueles trajes? Os vizinhos o acusariam de atentado ao
pudor, e a única pessoa que lhe daria acolhida seria a única a quem não
pediria, de jeito nenhum, pois o resíduo de autoestima sobrevivente não o
permitiria. Um chaveiro? Como chamar um chaveiro se até o telefone estava no
armário? “O que eu vou fazer, desgraça de vida? Sair ou ficar?” De tão cansado
não conseguia pensar criativamente, além do mais, criatividade nunca fora
virtude sua.
Desolado com a situação e
querendo desistir de tudo, sem nem saber o que viria a ser esse 'tudo' ao qual se
dispunha a desistir, ouviu vozes entrando no recinto. Discreto foi espiar:
- Oi Tonico, o que fazes
por aqui nesta hora? E sozinho?
Tonico explicou seu drama
ao jovem vizinho que entrava com a namorada, suprido de duas garrafas de vinho
e cálices para o início da noitada.
- Não te preocupes, vou arrumar
essa para ti, mas tu ficas de bico fechado sobre a bebida aqui na piscina,
certo?
- Claro, naturalmente...
Então?
- É o seguinte, sobe ao
meu apartamento. Atirou ao Tonico uma toalha que levava nas mãos. Acho que não
tem problema de ires nas toalhas. A chave de casa está embaixo do capacho
em frente à porta, entra e vai direto ao meu quarto. Minha mãe tem sono pesado
e já está dormindo. Amanhã tu pegas uma roupa minha e sai de fininho. Ok?
- E tu?
O garoto olhou para a
namorada, piscou um olho e voltou-se para Tonico.
- Depois daqui? Pode
deixar, a gente se resolve, eu não volto hoje. Vai dar tudo certo.
Animado, Tonico seguiu os
passos ditados pelo jovem vizinho. Manteve-se enrolado na toalha molhada da
cintura para baixo, e cobriu os ombros com a toalha seca para proteger-se do
frio. Subiu ao elevador escondendo o rosto da câmera por precaução. Entrou no
apartamento, pé por pé, silenciosamente. Ia-se ao quarto quando se deu conta
que havia um rombo no estômago, estava faminto, desde a tarde não comia. Voltou
e dirigiu-se à cozinha. Deixou na cadeira a toalha que levava aos ombros, pois
ela atrapalhava seus movimentos. Já estava quase dentro da geladeira quando
ouviu às suas costas:
- Filho? Eu estou com dor
de cabe...ça...
Tonico virou-se
instintivamente e ficou de cara com a dona da casa.
- O que a senhora está
fazendo aqui?
- Seu Antônio? A mulher
em trajes de dormir, com algumas transparências, olhou aturdida para os lados, depois
para si, e de sobressalto cobriu com um braço a região dos peitos e com a mão livre
a região pélvica. Eu não estou na minha casa?
- Sim. Não. Não sei. A
senhora sabe?
- Não. Não sei direito. Onde
nós estamos? Olhou novamente para os lados, arregalou os olhos e perguntou. Essa
não é a minha casa? O senhor está... Nu e enrolado numa toalha? Oh, Meu Deus, o que
foi que aconteceu aqui? Seu Antônio, o senhor se explique. Ou melhor, o senhor me
explique; ou. Não, não fale nada, por favor, nada! Estou tão envergonhada! Como
vou contar isso ao meu filho? Que constrangimento... Agora, por favor, pegue as
suas roupas e retire-se da minha casa. Estamos na minha casa, não estamos? Ai,
eu acho que bebi demais...
- A senhora me desculpe,
é um mal entendido... Tonico sumia com as palavras em sua boca.
- Sr. Antônio, esqueçamos
o que se passou aqui entre nós, não sei onde eu estava com a cabeça, acho que realmente
bebi demais no happy com as amigas. Ai, a minha cabeça está latejando. Pior,
não me lembro de coisa alguma. Ah, que situação! Eu realmente não costumo
receber homens na minha casa, eu moro com o meu filho, o senhor sabe, não fica
bem...
Tonico estava
completamente atônito com o rumo da confusão. De repente, seu instinto de
sobrevivência acionou uma coragem inédita, sabe-se lá de onde, e ele propôs uma
saída inesperada, inclusive a si mesmo:
- Agora eu não saio não, vou
dormir aqui, e amanhã eu me explico com o seu filho. Eu sou homem com H maiúsculo,
não fujo das situações em que me envolvo; menos ainda, às escondidas.
- Ah, sim... Não??? Então.
Tonico percebeu o ar de
malícia, e o tom de voz da mulher amaciando:
- Não. Claro que não. Já
fui até convidado a me retirar da sua casa. Não. Eu vou é dormir no quarto do
seu filho, e amanhã converso com ele. A voz de Tonico estava firme, mas as
pernas tremiam a mal sustentá-lo. Tonico só queria comer algo e se atirar numa
cama para dormir, não se aguentava mais.
- Mas Seu Tonico,
considerando que vais assumir a nossa... O nosso, hum... Afinal, estamos
tendo um caso ou vamos assumir uma relação? Isto está ficando tão complicado!
- Eu não vou assumir
nada, eu vou é...
- Vocês homens são todos
iguais, recém disse que era homem com H maiúsculo e logo se desdiz.
- Não estou me
desdizendo, é que. Não é isso, eu disse que vou conversar com o seu filho, não
que assumo qualquer coisa, entenda, entre nós não aconteceu nada. Efetivamente
nada.
- Desculpa Tonico, estou
tão atordoada que nem reparei, desculpa. Nós não fizemos nada? Mas se tu tivesses
me falado antes, eu tinha um comprimido, daqueles azuizinhos, sabe? Não é o que
podes estar pensando, é que uma amiga, sabe? Sabe como são essas coisas, não
sabe?
- Por Deus, eu preciso
comer e dormir, só isso.
- Então vem, Tonico, vem
que vou te cuidar melhor, agora estou mais desperta e já sei que tu precisas
de um comprimidinho azul. Vem?
Cansado, com fome e frio,
sem excitação e completamente desesperado, Tonico esbravejou:
- Eu não preciso, nem vou
tomar comprimidinho coisa nenhuma, eu vou é ir embora daqui. Não, não vou,
mesmo. Eu vou é dormir no quarto do seu filho, e pronto.
- Ah, é assim? Então está
tudo acabado entre nós. A mulher acintosamente serviu-se de água, virou-se, e
voltou ao quarto de dormir resmungando: Eu nem queria nada com o senhor, mesmo,
Sr. Tonico.
- Ainda essa! Oh, mundo
cruel, precisava de tudo isso?
Voltou à geladeira e não
achou algo para um lanche rápido. Desolado, descascou a única banana que havia
sobre a mesa e a devorou. Cambaleando de sono, Tonico jogou a toalha sobre o
sofá da sala, e caminhando completamente nu, entrou num dos quartos, se pôs
debaixo das cobertas e ferrou no sono.