sábado, 30 de agosto de 2014

Se não foi assim, foi mais ou menos assim.


Tonico trabalhou a semana abaixo de mau tempo. Saiu da empresa, dia após dia, depois do expediente. As horas naquele cubículo, denominado pelos otimistas de escritório, transcorriam atoladas, e ele, ainda mais atolado, estava sempre com a cara metida em pastas, documentos e na execução de relatórios. Os problemas não acabavam, mas o pobre do Tonico já definhava.

Sexta-feira chegou anunciando a folga merecida, ainda assim, saiu do escritório tarde da noite. Alquebrado, mal conseguindo dar conta de si, arrastou o corpo pelas ruas até o estacionamento. O vento gelado bafejava o rosto. Completamente destruído, e com frio, decidiu passar rápido por casa e seguir direto à piscina térmica do condomínio para um mergulho light. Extenuado, não conseguiu ficar na piscina, logo pulou para a banheira de hidromassagem. E lá ficou se derretendo e cochilando até murchar todinho. Relaxou.

Enrolou-se na toalha e foi à ducha. Mais animado, Tonico cantarolava enquanto se ensaboava e se divertia com a profusão de espuma produzida. Perdeu-se na brincadeira em baixo do chuveiro, como criança. Pensou: depois do banho encho a pança, tomo uma cachaça com limão e durmo com os anjos.

Secou-se. Envolto na toalha molhada, Tonico procurou a mochila com as roupas limpas para vestir após o banho. Não a encontrou. Estava tão cansado que nem lembrava onde pusera a sacola. Costumava deixar por cima, mas poderia ter deixado no armário. Ah, sim, o armário. Lembrou, deixou tudo no armário. Sim, ali estava o armário com o seu cadeado, trancado. E a chave do cadeado? Não, não poderia ter fechado o cadeado com as chaves, todas as suas chaves, dentro do armário. Ou poderia? Sim, sim, poderia. E ele o fez. Não tinha dúvidas.

Estava sem roupas para vestir e sem possibilidade de entrar em casa, e o relógio já deveria ter girado a invadir o sábado. Gritar seria uma saída - uma péssima saída! Se o escutassem ainda receberia multa por desrespeito ao horário de silêncio. Tocar na casa de algum vizinho, àquela hora e naqueles trajes? Os vizinhos o acusariam de atentado ao pudor, e a única pessoa que lhe daria acolhida seria a única a quem não pediria, de jeito nenhum, pois o resíduo de autoestima sobrevivente não o permitiria. Um chaveiro? Como chamar um chaveiro se até o telefone estava no armário? “O que eu vou fazer, desgraça de vida? Sair ou ficar?” De tão cansado não conseguia pensar criativamente, além do mais, criatividade nunca fora virtude sua.

Desolado com a situação e querendo desistir de tudo, sem nem saber o que viria a ser esse 'tudo' ao qual se dispunha a desistir, ouviu vozes entrando no recinto. Discreto foi espiar:

- Oi Tonico, o que fazes por aqui nesta hora? E sozinho?

Tonico explicou seu drama ao jovem vizinho que entrava com a namorada, suprido de duas garrafas de vinho e cálices para o início da noitada.

- Não te preocupes, vou arrumar essa para ti, mas tu ficas de bico fechado sobre a bebida aqui na piscina, certo?

- Claro, naturalmente... Então?

- É o seguinte, sobe ao meu apartamento. Atirou ao Tonico uma toalha que levava nas mãos. Acho que não tem problema de ires nas toalhas. A chave de casa está embaixo do capacho em frente à porta, entra e vai direto ao meu quarto. Minha mãe tem sono pesado e já está dormindo. Amanhã tu pegas uma roupa minha e sai de fininho. Ok?

- E tu?

O garoto olhou para a namorada, piscou um olho e voltou-se para Tonico.

- Depois daqui? Pode deixar, a gente se resolve, eu não volto hoje. Vai dar tudo certo.

Animado, Tonico seguiu os passos ditados pelo jovem vizinho. Manteve-se enrolado na toalha molhada da cintura para baixo, e cobriu os ombros com a toalha seca para proteger-se do frio. Subiu ao elevador escondendo o rosto da câmera por precaução. Entrou no apartamento, pé por pé, silenciosamente. Ia-se ao quarto quando se deu conta que havia um rombo no estômago, estava faminto, desde a tarde não comia. Voltou e dirigiu-se à cozinha. Deixou na cadeira a toalha que levava aos ombros, pois ela atrapalhava seus movimentos. Já estava quase dentro da geladeira quando ouviu às suas costas:

- Filho? Eu estou com dor de cabe...ça...

Tonico virou-se instintivamente e ficou de cara com a dona da casa.

- O que a senhora está fazendo aqui?

- Seu Antônio? A mulher em trajes de dormir, com algumas transparências, olhou aturdida para os lados, depois para si, e de sobressalto cobriu com um braço a região dos peitos e com a mão livre a região pélvica. Eu não estou na minha casa?

- Sim. Não. Não sei. A senhora sabe?

- Não. Não sei direito. Onde nós estamos? Olhou novamente para os lados, arregalou os olhos e perguntou. Essa não é a minha casa? O senhor está... Nu e enrolado numa toalha? Oh, Meu Deus, o que foi que aconteceu aqui? Seu Antônio, o senhor se explique. Ou melhor, o senhor me explique; ou. Não, não fale nada, por favor, nada! Estou tão envergonhada! Como vou contar isso ao meu filho? Que constrangimento... Agora, por favor, pegue as suas roupas e retire-se da minha casa. Estamos na minha casa, não estamos? Ai, eu acho que bebi demais...

- A senhora me desculpe, é um mal entendido... Tonico sumia com as palavras em sua boca.

- Sr. Antônio, esqueçamos o que se passou aqui entre nós, não sei onde eu estava com a cabeça, acho que realmente bebi demais no happy com as amigas. Ai, a minha cabeça está latejando. Pior, não me lembro de coisa alguma. Ah, que situação! Eu realmente não costumo receber homens na minha casa, eu moro com o meu filho, o senhor sabe, não fica bem...

Tonico estava completamente atônito com o rumo da confusão. De repente, seu instinto de sobrevivência acionou uma coragem inédita, sabe-se lá de onde, e ele propôs uma saída inesperada, inclusive a si mesmo:

- Agora eu não saio não, vou dormir aqui, e amanhã eu me explico com o seu filho. Eu sou homem com H maiúsculo, não fujo das situações em que me envolvo; menos ainda, às escondidas.

- Ah, sim... Não??? Então.

Tonico percebeu o ar de malícia, e o tom de voz da mulher amaciando:

- Não. Claro que não. Já fui até convidado a me retirar da sua casa. Não. Eu vou é dormir no quarto do seu filho, e amanhã converso com ele. A voz de Tonico estava firme, mas as pernas tremiam a mal sustentá-lo. Tonico só queria comer algo e se atirar numa cama para dormir, não se aguentava mais.

- Mas Seu Tonico, considerando que vais assumir a nossa... O nosso, hum... Afinal, estamos tendo um caso ou vamos assumir uma relação? Isto está ficando tão complicado!

- Eu não vou assumir nada, eu vou é...

- Vocês homens são todos iguais, recém disse que era homem com H maiúsculo e logo se desdiz.

- Não estou me desdizendo, é que. Não é isso, eu disse que vou conversar com o seu filho, não que assumo qualquer coisa, entenda, entre nós não aconteceu nada. Efetivamente nada.

- Desculpa Tonico, estou tão atordoada que nem reparei, desculpa. Nós não fizemos nada? Mas se tu tivesses me falado antes, eu tinha um comprimido, daqueles azuizinhos, sabe? Não é o que podes estar pensando, é que uma amiga, sabe? Sabe como são essas coisas, não sabe?

- Por Deus, eu preciso comer e dormir, só isso.

- Então vem, Tonico, vem que vou te cuidar melhor, agora estou mais desperta e já sei que tu precisas de um comprimidinho azul. Vem?

Cansado, com fome e frio, sem excitação e completamente desesperado, Tonico esbravejou:

- Eu não preciso, nem vou tomar comprimidinho coisa nenhuma, eu vou é ir embora daqui. Não, não vou, mesmo. Eu vou é dormir no quarto do seu filho, e pronto.

- Ah, é assim? Então está tudo acabado entre nós. A mulher acintosamente serviu-se de água, virou-se, e voltou ao quarto de dormir resmungando: Eu nem queria nada com o senhor, mesmo, Sr. Tonico.

- Ainda essa! Oh, mundo cruel, precisava de tudo isso?

Voltou à geladeira e não achou algo para um lanche rápido. Desolado, descascou a única banana que havia sobre a mesa e a devorou. Cambaleando de sono, Tonico jogou a toalha sobre o sofá da sala, e caminhando completamente nu, entrou num dos quartos, se pôs debaixo das cobertas e ferrou no sono.

sábado, 23 de agosto de 2014

Quando eu era escritor


Um dia, quando eu ainda era um escritor, aconteceu algo tão estranho que até hoje, passados quase dez anos, sinto perplexidade ao lembrar. Nunca, nunca consegui entender.

Naquela manhã, sentado à frente do computador na sacada do décimo andar, diante do majestoso rio sempre inspirador, respirava os bons ares e me preparava para escrever uma crônica ao jornal.  O vento desalinhava meus parcos fios de cabelos grisalhos, e o sol aquecia meus pés usualmente frios pela má circulação. Estava animado. As ideias já se encontravam prontas a serem jogadas e formatadas na tela em branco. Então, iniciei a dedilhar veloz o texto que se insinuava na imaginação. No entanto, sabe-se lá porque diabos, o que eu lia simplesmente não correspondia ao que escrevia. Minhas palavras, ideias e o texto digitados perdiam-se automaticamente no trajeto entre o teclado e a tela. Nem ousei prestar atenção às palavras formadas, apenas confirmava que não era o que eu havia escrito.

Droga, pensei, deu pane neste computador, justo agora que me sentia feliz e criativo. Droga, mil vezes droga. Fechei a página do computador e abri outra. Tentei escrever novamente, mas somente alguma bobagem. E a tela do computador insistiu em me apresentar outras bobagens quaisquer, independentes das que eu escrevia. Ligeiro passei a perder minha preciosa paciência (algo que nunca tive sobrando na minha vida), e, indignado, vê-la voando e jogando-se ao rio. Desliguei o computador, esperei dois minutos contados no relógio, segundo a segundo, e voltei a ligá-lo. Abri uma página em branco e tentei mais uma vez. Cada palavra dedilhada no teclado lançava outra na tela, palavras que a própria tela decidia mostrar. Eventualmente dava a coincidência de serem digitadas e mostradas as mesmas letras, nunca as mesmas palavras, e como exceção, não como regra.

Com raiva passei a teclar qualquer letra sem preocupação com a composição da palavra, e, provocativamente, a tela despejava outras letras também desconexas de sentido. Eu espumava, suava frio, estava estressadíssimo. Num sopro de bom senso, parei tudo. Respirei profundamente. Tentei me acalmar. Com toda a tranquilidade que me foi possível, mais uma vez, me pus a escrever o texto que havia pensado. Fui escrevendo e insistindo à revelia do que aparecia. Parei depois de dois parágrafos concluídos. O texto na tela, naturalmente, não era o meu. Então resolvi ler e entender o conteúdo escrito. Fiquei impressionado, era maravilhosamente incrível o que lia, parecia o início de uma história, porém não a minha, uma outra, e, por completa ironia do destino, interessantíssima. Mesmo. Infinitamente melhor do que a minha.

Gelei. A cabeça rodou e eu tonteei. Diante desta circunstância, o que eu deveria fazer? Desistir dessa loucura toda? Tomar um banho para acordar de verdade, pois certamente eu estava era sonhando? Continuar escrevendo aquele texto que não era meu, e sim daquele computador arrogante, ou daquela tela insana, ou dessa dupla maluca de personalidade autoritária... Ou o texto seria de um alienígena encantado e intrometido? Vejam só, eu, um homem pretensamente culto acreditando em seres mágicos surgidos do além. Confesso, eu estava à beira da loucura. Levantei de ímpeto, fui até a porta da sacada, olhei para dentro do apartamento e me certifiquei do óbvio: eu estava só. Num impulso, voltei mais do que depressa à cadeira em frente à tela  (aquela desequilibrada, mas de muito talento) e me ajeitei com ansiedade.

Freneticamente passei a escrever a crônica que havia me proposto, e o computador, na mesma ligeireza, me presenteava com um conto que ele criava, integralmente alheio à minha vontade e à execução do meu trabalho de digitação. Ao final de horas, não tenho noção de quantas, mas foi um punhado de horas dedicadas com afinco a este fazer psicótico, me descobri diante do melhor conto de toda a minha vida. Uma obra prima.

Sim, eu havia escrito aquela maravilha. E, ao mesmo tempo, lamentavelmente, não. Eu era o autor do texto, mas não das ideias contidas nele. Eu escrevi uma crônica sobre o cinza e, sem lógica alguma, nasceu um belíssimo conto prateado. Como explicar isso a quem quer que seja? Absolutamente isso não fazia o menor sentido. E a minha crônica? Sumiu, para meu consolo. Desapareceu até o último suspiro por de trás daquele conto fantástico. Devo admitir: a crônica seria bem ruinzinha, embora na hora gestada eu não pensasse assim. Francamente, qualquer coisa ao lado da narração do meu, hum..., do nosso conto - meu e do computador – não teria chance alguma, ah, não teria.

O que fazer com o conto? Enviar ao jornal para publicá-lo como faria com a crônica? E se alguém me aparecesse reivindicando a autoria? Será que o meu computador não estaria a serviço de algum hacker, espionando e se apropriando de produções alheias? Decidi deixá-lo hibernando por algum tempo para avaliar as situações vindouras. Escreveria outro conto ou crônica, cumpriria com meus compromissos profissionais, e ganharia tempo para pensar sobre o futuro de nossa obra prima. E, se o computador continuasse a me ajudar? Teria eu descoberto “o computador dos textos de ouro?” Comecei a gostar da brincadeira.

Novamente diante do computador, e com o firme propósito de produzir novos textos, digitei algo vago e frágil a sondar o companheiro de trabalho. Para meu desespero, ele transpunha à tela letras e palavras tais quais eu dedilhava no teclado, sem nenhuma cooperação à minha falta de inspiração. Esforcei-me à criatividade, mas as ideias quebradiças arrastavam-se pelo solo da imaginação a perder-se do caminho. Fiquei horas, dias e semanas tentando escrever, e simplesmente nada decolava. Meu nível de exigência havia aumentado, e minha censura julgava vulgar a raridade produzida. Foi assim que daqueles tempos em diante, nunca mais escrevi texto que eu apreciasse. Logo depois parei de escrever. Automaticamente, também parei de publicar.

Entrei em estado de desânimo. Num piscar de olhos, eu estava em tristeza profunda e, na sequência, vim cair estatelado numa depressão de dar dó. Adoeci ao perceber que findava minha capacidade para a escrita, que eu não encontrava mais, em mim, o escritor que até então havia sido. Chorei como homem não chora, de me debulhar até secar. Solucei de doer no peito a morte das esperanças. Pensei que ia morrer de desgosto.

Dois meses do ocorrido, porém, acordei com as emoções mansas. Sem muito pensar, eu vesti meu terno embolorado há anos guardado e sai andando pelas ruas, indiferente ao rumo ou destino. O vento morno desalinhava meus parcos fios de cabelos grisalhos. Sem mais nem porquê, parei em frente ao escritório de advocacia de meu irmão. Entrei. Me apresentei para o trabalho. Ele sorriu. Sentei à antiga mesa e comecei a peticionar.


Epílogo

E a minha obra prima? Deixei-a guardada no meu computador, hibernando, até que decidisse sobre o que fazer com ela. Um dia porém, ansioso por reler o conto, procurei-o na pasta armazenada e não o encontrei. Lá estava somente o título, não o conteúdo. Será que o meu conto, com vida própria, saiu para se refazer em outro lugar? Ou, pior ainda, para outro escritor? Ou simplesmente se desfez, assim como se fez?
 Nunca, mas nunca, mesmo, eu entendi o que aconteceu quando eu ainda era um escritor. Fico pasmo até hoje ao me lembrar.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Uma viagem...



Apenas um fim de semana olhando a praia, foi o que consegui para descansar da turbulenta vida de problemas devastando todos os espaços de mim. Com certeza faria tudo, e o impossível também, para aliviar-me das tensões. A manhã estava limpa, alva e, aos meus olhos, sorridente. Sentei-me na sacada do alto do hotel a deliciar-me com a visão do mar azul esverdeado, das ondas brancas saltando vigorosas sobre as areias de cor camurça clara, e a curtir os pequenos vultos sentados à sombra de guarda-sóis coloridos. O prazer estava garantido apenas com a contemplação e o cheiro de maresia. Ali eu ficaria até o dia se deitar, com certeza.

Meu apartamento, na esquina da Avenida Beira Mar, tinha as aberturas para a rua lateral, sendo assim, minha visão de encantamento ao mundo tangente se fez pela diagonal. Exatamente na frente da sacada eu via as janelas do prédio do outro lado da rua. Naturalmente eu não tinha o menor interesse de fuxicar as intimidades que, por ventura, se insinuassem desfilando diante das janelas. Estava disposta a transbordar-me das sensações provocadas pelo ar marinho sobre as minhas emoções. Porém, independente do meu desejo, magneticamente minha atenção foi sugada para uma janela em especial.

Um andar abaixo, exatamente na frente da minha sacada, um homem e uma mulher moviam-se em desacordo pelo quarto. A janela, com vidros abertos e cortinas recolhidas, expunha uma cama de casal arrumada em cores alegres, um balcão ao fundo sustentando muitos objetos pequenos e a televisão, e uma gaiola com uma ave pulando em pequenos voos. A jovem mulher sentada num canto da cama, usando vestido curto de alcinhas e os cabelos soltos emaranhados, parecia chorar. O homem sem camisa, com uma barriga avantajada caindo sobre a bermuda amarela, transitando lá pelos cinquenta anos, não olhava para a mulher enquanto parecia discursar ensimesmado. Ele gesticulava lentamente as mãos e caminhava de um lado ao outro, entre a cabeceira e os pés da cama. Desviei minha atenção. Não, eu não queria me acercar dos problemas alheios. Eu queria o mar, o ar, acalmar. Amar? Talvez, talvez, por que não?

Segundos ou minutos ou, nem sei bem, lá estava eu espreitando com o olhar enviesado o teatro mudo da vida real. Nesta nova cena o homem estava agachado aos pés da moça, com os braços apoiados sobre os joelhos dela, abatido, e parecia suplicar. Ela tapava o rosto com as mãos espalmadas e, aparentemente, soluçava. Voltei a olhar à praia, mas dali nada mais me atraía. Os ruídos vindos da rua começaram a se transformar aos meus ouvidos. Comecei a distinguir vozes que se destacavam do barulho. Passei a identificar uma conversa, ouvia nitidamente o diálogo entre uma mulher e um homem. Voltei os olhos ao apartamento do casal. O homem estava sentado na beirada da cama, a mulher havia se levantado e parado diante dele. Ela falava: “Eu te amei contrariando a lógica e o bom senso. Eu te amei apesar do improvável...” Eu a escutava como se estivesse no mesmo ambiente. Não, não podia ser. Eu havia me transportado e, terrivelmente, me escutava a conversar e chorar diante daquele homem. Não havia outra voz nem outra mulher. Havia aquele homem e eu. Eu não o conhecia, mas sentia aquela história como se fosse minha. Doía-me no âmago, como me doeu as dores dos amores de outrora.

Era eu quem ali estava e prosseguia em discussão, adentrando a história daquele homem, sem permissão. Também ele, naquele instante, invadia os meus sentimentos de forma intrusa. Nossas palavras envenenadas pairavam no ar espreitando o alvo até sua emissão em ataque. E o sofrimento liberto através da verborragia entranhava nas carnes, pelos poros, a cada fragmento de tempo. Do homem, eu escutava murmúrios indecifráveis, rosnados tímidos e ferozes, gemidos sufocados, muitos suspiros melancólicos, e acusações. Porém minhas palavras se sobrepuseram às dele. Após o desengasgo,  menos desesperada, eu ainda dizia:

- Eu aceitei as tuas condições, me sujeitei aos teus caprichos, me adaptei às tuas regras. Ninguém apostava nesta relação. E o pior, nem mesmo tu, não é? Mas o destino conspirou em prol deste amor. Por que, heim? Alguém pode me explicar, por quê? Mesmo vacilante, eu sei que tu me amaste. Senti que foste deixando cair teus escudos e as fortes armaduras, e devagar acabaste por te mostrar além das representações convencionais. Te senti feliz e risonho, e falante... Tudo foi acontecendo sem pressa nem promessas. Eu fui te amando cada vez mais e tu foste te rendendo ao nosso amor. Mas a história saiu do teu script, não foi? Não era para ter sido assim. Concebeste o nosso encontro já com o desenlace programado. Era para ser apenas uma aventura, não havia espaço para comprometimentos... Tu querias apenas arrancar a flor em botão, envaidecer-te com o colorido, o perfume e o frescor da planta nova, para depositá-la ao lixo depois de satisfazer teus anseios egoístas.

Suspirei fundo até quase desmaiar. As lágrimas escorriam velozmente dos meus olhos. Continuei.

- Estás sendo cruel jogando nos meus braços uma culpa sem contornos, sem substância, sem argumento. Sou culpada por teres me amado? Te obriguei a isso, foi? Sou culpada por não conseguires manter o teu roteiro de vida à risca? Engraçado. E muito triste também. Quando eu te amei tu gostaste, ah, e como, te regozijasse, parecias criança com brinquedo novo. Mas quando te descobrisse me amando, aí ficaste horrorizado, vulnerável, inseguro. Amar é correr riscos, e isto tu não suportaste, não é? Não quiseste desamarrar a vida do controle das próprias mãos. Eu descobri, meio tarde, mas descobri. Lamento, de verdade, pelos teus traumas do passado, mas eu não tenho nada a ver com os teus sofrimentos anteriores. Realmente lastimo que não queiras mais viver a felicidade que nos era tão, tão... Mágica? És covarde, um homem fraco cheio de medos. O sofrimento é inerente à vida, tu ainda não aprendeste? Ainda não? Mesmo fugindo de amar, vais sofrer de qualquer jeito...

Decepcionada eu não olhava àquele homem, o objeto do meu desencanto. Ao desabafo sentia-me tonta e cansada. As palavras vomitadas haviam ressecado a boca. As ideias ainda rodopiavam sobre o ponto fixo da dor, o fim iminente. Os olhos ardiam e eu sentia as pálpebras inchadas. A atmosfera do ambiente tornou-se pesada e insalubre. Eu precisava urgentemente respirar o ar vindo do mar pela brisa. Debrucei-me sobre o parapeito, olhei na direção da praia, afoguei os olhos na areia e depois na água. Cerrei a visão e me pus a inspirar e expirar profundamente. Senti algum alívio, parecia que a pureza do ar revigorava a pureza da alma.

A praia se fez em imagem. Novamente de olhos abertos, enxerguei a janela dos vizinhos. Ela estava com as cortinas fechadas. E eu, sem pressa, sequei a última lágrima que escorria pelo rosto.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Ponto final



A centenária encontrava-se no leito já sentindo o suave e morno abraço da morte. Embora lúcida, não conseguia se comunicar mais com os entes amados que a visitavam, pois nos últimos dias a doença impedia a fala e os gestos. Com a alma em paz, ela percebia a forte presença dos queridos bisnetos e netos e filho e amigos, num rodízio irmanado de muito afeto. Atenta aos acontecimentos do mundo terreno, acolhia com serenidade o destino a outras dimensões: ela sabia, o fim desta etapa era chegado.

Olhava com profunda admiração para o filho dedicado que tanto a acompanhou e cuidou. Repleta de amor lhe sorria com os olhos. Tentava sorrir com os lábios, mas não sabia se ainda o conseguia fazer. Porém, tinha total convicção de que o filho a entendia e lhe correspondia com sorrisos doces e carícias em seda, e com delicados beijos no rosto rugoso. Desde sempre houvera uma cumplicidade única entre o filho e a mãe. Havia um entendimento silencioso recheado de respeito mútuo, uma confiança cega que não transgredia os limites da individualidade, e a discordância acontecia sem discussões nem rancores, apenas com argumentos. Sentia saudades da filha que havia partido tão antes da hora. Mas em breve essa dor seria aplacada, definitivamente.

Fraca e cansada, a centenária dormitava e acordava com frequência. Quando desperta ouvia sussurros, fungados, e rumores de conversas sobre lembranças pinçadas pela memória de um e outro. E na correnteza destes fragmentos de vida trazidos à superfície, ela mergulhava nas próprias lembranças e seguia viagem a uma retrospectiva pessoal. Nestas oportunidades de imersão ao vivido, acabava fazendo reflexões mais profundas do que o esperado por si mesma.

Falando com seu deus, ou apenas com sua consciência, ela concluía que tinha motivos para se orgulhar, pois evoluíra em valores e ações ao longo de sua trajetória. Quando jovem havia sido limitada em sua percepção do mundo e tido pobreza de espírito no seu fazer, mas entendeu que essas coisas decorriam de certa ignorância juvenil. Sempre tivera coração bondoso e senso humanitário, no entanto, eles foram melhor adubados e revigorados a partir da maturidade alcançada na vida adulta. Com aperto no peito concluiu que nunca fora amada pelo pai como entendia ser merecedora, ou apenas desejosa. Não que ele a maltratasse, claro que não, apenas a ignorou durante os cinquenta anos de convivência. Não foi consolo perceber que o pai também não amou a outros filhos. De uma prole a perder de vista, os eleitos foram dois, a quem o pai amava, admirava, confiava e distinguia, independentemente de quais fossem os seus comportamentos. Mas na contrapartida, ela sabia ter sido profundamente amada pela mãe, admirada por alguns irmãos e cunhados, referência para os dois filhos e seus pares, estimada por um tanto de sobrinhos, querida por um montão de amigos e uma infinidade de pessoas até chegar aos cento e poucos anos. E principalmente, sentia-se muitíssimo amada pelos netos e bisnetos, juventude linda que encantava e coloria os seus dias com assuntos e aventuras. Emocionante! Assim ela dizia, quando ainda podia dizer. E amou a todos quanto pode  com desprendimento, distribuindo carinhos através de abraços apaixonados e de palavras macias ou firmes, conforme a ocasião.  

Resgatando episódios passados, sabia-se arrependida dos erros cometidos. Tinha para si que,  por vezes, eles a envergonharam de sobremaneira, mas no somatório e subtrações do todo vivido, ela acreditava que os acertos suplantaram as faltas perpetradas, ou pelo menos as equilibraram. Entristecia-se dos pequenos egoísmos distribuídos entre aqueles cento e poucos anos, mas acabava por perdoar-se diante do esforço realizado em qualificar-se durante o mesmo período de tempo. E assim, prosseguia em sua revisão e auto avaliação da história de vida, seguindo por capítulos desordenados, mas concluindo sempre que, apesar dos pesares, merecia a própria misericórdia. Abria os olhos e sorria aos que ali estavam, e que com ela compartilhavam de mais este momento denso e intenso, mesmo que nem o imaginassem. A retrospectiva contava com a ajuda daquela gente amada e resultava na riqueza da síntese: a vida valeu a pena.

Eram quase vinte horas de uma tranquila quinta feira de outubro. A primavera estava particularmente perfumada e a luz prata da lua invadia a janela através dos vidros semiabertos. O filho ia fechando as pesadas cortinas do quarto quando, ao mirar os olhos da mãe, sentiu seu apelo e interrompeu prontamente o movimento. Aproximou-se dela como brisa, fez carinho nos ralos cabelos em neve e beijou-lhe a testa. Falando baixo, como de costume, desejou à mãe que tivesse bons sonhos. Ela, mais um vez, beijou-lhe com o olhar cintilante. Ambos, de mãos dadas, mirando pela janela, sorveram o brilho da noite.


quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Sobre estudar para concurso



Estudar para concurso é enfrentar um baita desafio; e não desistir dele no meio do caminho é uma vitória para poucos entre os milhares de concorrentes. Este é um trajeto para se trilhar com coragem, perseverança, muita força de vontade, além de muitíssimas estratégias. É uma aventura com percalços e frustrações, porém, os que prosseguem, com determinação em direção ao objetivo firmemente traçado, alcançam o fim tão desejado e sonhado. A experiência tem nos apontado para isso.

Estudar para concurso é executar uma ação prática, com a qual só se obtém os bons resultados através do exercício da prática de estudo. São nossas subjetividades que frequentemente atrapalham a concretude da coisa, e desta forma, nos põem a sofrer. Ouça meu conselho, apenas estude, não sofra. E quando sentir-se cansado, descanse. Simples assim.

Se o objetivo é estudar para valer, a prioridade máxima deve ser o estudo. Grife a frase anterior, absorva a importância desta ideia, pois aqui está o grande segredo: "priorizar o objetivo maior". E para render nos estudos é preciso que o estudante durma bem, coma bem, faça exercícios físicos, tenha algum lazer, e acima de tudo, sinta-se minimamente feliz. É o básico.

Vamos às questões objetivas?

·       faça um projeto de estudo como referência, em papel, para sua permanente visualização, e realize as adequações necessárias no transcorrer do tempo;

·       determine os horários de estudo e de folga para todos os dias da semana;

·       para pegar o ritmo, inicie os estudo com a metade das horas desejadas, aumentando-as gradativamente até chegar ao volume desejado - distribua este aumento de horas ao longo de um mês, no máximo dois, conforme as resistências e dificuldades pessoais;

·       estude fazendo pausas programadas para arejar as ideias, esticar as canelas, tomar água ou fazer um lanche, e atender outras necessidades eventuais;

·       faça atividade física aeróbica diariamente - não há obrigatoriedade de se ir à academia -, ponha música e dance por meia hora, pule corda por cinco minutos, leve o cão para passear por uns trinta a quarenta minutos, suba e desça as escadas do prédio, rapidamente e por algumas vezes, dê caminhada ou corra na rua, ou ainda faça algum outro exercício físico que aumente o ritmo respiratório e faça suar;

·       promova ajustes ao plano de estudo sempre que necessário, e persiga com garra as intenções impressas à sua frente;

·       faça aulas e estude por conta, destrinche a teoria e faça os infinitos exercícios disponíveis, mas com serenidade, pois diante dos erros cometidos apenas estarão destacados os pontos onde a informação precisa de assimilação, correção ou fixação;

·       estude por meses e anos, pelo tempo que tiver de ser, nunca abrindo mão da forte determinação do guerreiro que vive dentro de cada um, mas, veja lá, estude de verdade, pois tem muita gente que faz de conta que estuda e depois se põe a chorar as pitangas, puerilmente, como se fosse vítima do destino roubado.

E, para finalizar, não creia no sucesso sem o devido esforço, naturalmente ele acontece, mas convenhamos, isso é fato raríssimo. Sim, a sorte existe, inclusive devemos contar com ela, mas não enquanto estivermos atolados em nossa própria inércia. Até para se contar com a sorte é imprescindível que façamos a nossa parte, é preciso que nos mexamos em busca dos bom ventos. Vamos nessa, vamos estudar?