segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Lua, oh lua



       
 Debruçado à janela do sexto andar, o velho homem encontrava-se completamente hipnotizado olhando a lua. Pintada de dourado, e não de prateado como de costume, a lua estava belíssima e sedutora. A musa colada ao céu enegrecido, perto do horizonte encostado no mar, estava lá, postada com singeleza diante dos seus olhos. A danada deixava seu brilho irrefletidamente refletido sobre as águas calmas, mas dançantes, e provocava-lhe suspiros e arrepios e um leve lacrimejar. Com pequeno rasgo na base, revelando a ausência de uma parte roubada, a lua quase cheia, quase perfeita, atordoava seus sentidos e emoções.


Ele amava a lua. Ah, se amava! Acima de tudo, ele amava a lua. Sim, ele também amava as estrelas, ausentes nesta noite, mas eram amores diferentes. A lua era única, era o amor maior, indescritível, que o enternecia e o fazia melhor - um poeta de alma. Já as estrelas eram muitas, espevitadas, eram amores voluptuosos, alegres e frívolos. Elas mexiam com seu lado maroto, inconsequente, mesmo hoje no topo de seus setenta e alguns anos. Mas, a verdade verdadeira, é que somente a lua tirava dele os mais profundos e apaixonados suspiros.


O velho homem amparou o rosto com as mãos após fincar os cotovelos ao peitoril, e fechou os olhos para sentir a lua. Sentiu seu perfume, aquele inebriante cheiro suave e melodioso que só a lua conseguia exalar. E, na velocidade do pensamente ele viajou abduzido para uma de suas crateras de areias finas. Caiu deitado e rolou e rolou e rolou, parando esparramado no solo macio da lua, sem fôlego de prazer, completamente entregue. Abriu lentamente os olhos. Sorriu. Com suas grandes mãos, como se carinho fosse, pegava delicadamente os finos grãos deixando-os escorrer entre os dedos nodosos. Ele sentia-se feliz. Tão feliz, que após se perder do tempo, se levantou calmo e resoluto. Ele se purificaria para a lua. Ela merecia a sua regeneração.


Com as duas mãos, alternando-as, ele puxou pela boca as mentiras que viviam no seu âmago. Uma a uma, as mentiras que o preenchiam iam sendo extraídas e colocadas ao chão. O monte de mentiras crescia, na mesma proporção em que ele esvaziava. O monte ficou muito alto, e ele completamente oco. Mas, feliz por se livrar de tantas sujeiras. Porém ele ainda não estava pronto, faltava liberar-se de outras coisas mais. Desabotoou lentamente um de seus infindáveis personagens e o colocou ao solo, do outro lado de si. E assim procedeu desvestindo-se das camadas e mais camadas de personagens com as quais representou o seu teatro ao longo da existência. Reviu velhos personagens mal lembrados, mas de boas atuações no passado, bem descoloridos e mofados como decorrência do desuso. A montanha dos personagens aumentava a empatar com o monte das mentiras.


Desnudo dos personagens e vazio das mentiras, o velho homem se olhou orgulhoso, envaidecido pelo despojo. E pela coragem. Ele estava limpo. Novinho em folha. E translúcido! Incolor e inodoro? E inútil? Sentiu-se estremecer. Ficou desconfortável. Nervoso. No que ele havia se transformado? Em um grandessíssimo nada? Por que, mesmo, propunha-se deixar de ser quem sempre fora? Hã? Procurando-se novamente com o olhar voltado sobre o vazio de si mesmo, e enxergando somente os dois montes de história descascada e extirpada, atônito, o homem congelou em sua incredulidade. Vagarosamente o sangue começou a rodar e a percorrer e a congestionar. Pois, antes que a ira o fizesse perder a cabeça, que nem mais sabia onde estava, vestiu-se apressadamente com os personagens deixados ao lado. Aquecido pelas roupagens, nutriu-se vorazmente das mentiras jogadas ao chão. Revigorado através de seus pertences, aleatoriamente colocados em nova ordem, soube-se capaz de recriar sua existência em renovados capítulos, inventando histórias de amores, de traições, de amizades; vivendo fantasias e redesenhando enganos, mentiras e, inclusive, verdades, por que não?

Apaixonado pela lua, mas já com frio por causa da brisa gelada vinda do mar, abriu os olhos de vagar, fechou a janela com jeito e foi-se deitar. Com a cabeça sobre o alto travesseiro, metido entre os surrados lençóis impregnados do próprio cheiro, vagando entre devaneios até ser agarrado pelo sono, ainda recordou saudoso. Lamurioso. "Eu a amei tanto, e ela não entendeu, não entendeu nada. E me abandonou... Sim, é verdade, eu também amei outras mulheres, mas era diferente. Ela foi única, foi o meu grande e melhor amor. Meu verdadeiro amor. As outras haviam sido somente amores de passa tempo, não eram importantes para mim, não eram... Eu a amei tanto... E ela não entendeu! Não... Não entendeu..." 


Assim, mais uma vez sozinho, ele dormiu.