domingo, 15 de dezembro de 2019

Ousadia



Nos últimos quarenta anos eu mudei muito... Fisicamente ainda guardo alguma semelhança de quem fui, mantendo leves traços de um tipo, o meu tipo, hoje enfeitado por gorduras e rugas e manchas na pele, além de adereços como o que carrego frente aos olhos.

Neste punhado de décadas transcorridas, gangorra de acontecimentos, incontáveis mudanças impactaram em mim gerando transformação. Hoje não sou mais a mesma pessoa de outrora, e por ironia, eu continuo sendo a mesma de sempre. E essas coisas me impressionam pela tão incoerente coerência.

Assim, seguindo caminhos incompreensíveis e improváveis, me deparei com o inesperado.  Após infinitas arrumações realizadas na casa com o intuito de eliminar velharias inúteis, e mesmo depois de submeter-me às mudanças concretas e subjetivas que a vida impôs, eu descobri inúmeras cartas de um passado longínquo, de um amor esquecido, de um tempo mágico e vaporoso. Cartas escritas há mais de quarenta anos que eu não sonhava ainda existirem. Eu guardei as cartas, mas não dei por conta, e desde então não as vi mais.

É o destino agindo? Sou uma acumuladora? Por que tenho guardado essas cartas? Como não percebi que elas estavam comigo todos esses anos, onde quer que eu fosse ou como me sentisse? Esqueci completamente das cartas, mas as guardei, e as carreguei junto a mim. Por quê? Não sei.

E agora, fazer o quê? Primeira coisa que me ocorreu foi compartilhar minha descoberta com o remetente das cartas tão encantadoramente juvenis, mas... para quê? Isso seria ridículo. Por que eu invadiria o presente de alguém com um passado apagado e encoberto com as poeiras da vida? Que direito tenho eu de reivindicar a amizade de alguém que ficou no passado e que não conheço mais? Por que correr o risco de gerar desconforto ou desgosto? Mas, se a situação puder gerar alegria, a mesma que me invade ao cogitar o compartilhamento desse inimaginável fato?

Fui às redes sociais, ainda sem noção do que fazer. Lá encontrei a imagem de um senhor de meia idade correspondente ao nome procurado. Comparando a imagem na tela com a foto 3x4 em minhas mãos, identifiquei o mesmo olhar. O mesmo olhar que eu nem lembrava mais, mas que as cartas me instigaram a procurar.

Desculpa a ousadia, mas ficaria muito feliz de ter notícias tuas.


sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Olhos vazados



     A aspereza dos dias e a rudeza das noites, as relações mal sustentadas pela extrema necessidade, a falta de expectativas diante de um mínimo por vir, além da perda das próprias referências existenciais, vão deixando alguns prontos para a guerra, mas outros,  a maioria deles, estão sendo torturados com o rápido esfriamento dos corpos, das emoções, e...  De suas almas?

     Os olhos de pálpebras caídas não olham mais os outros olhos, mesmo diante de olhos por onde o amor já transitou. Os olhos apagados, enegrecidos, submetidos, não veem e nem mais sabem a quem pertencem, mesmo sendo olhos que um dia sonharam coloridas perspectivas. 

     São povos, seres humanos dizimados diante dos nossos olhos indiferentes ou impotentes. Diante de nossos olhos inseguros, ingênuos, quando não, pobres de espírito. Olhos que desviam o olhar, que se lacram e adoecem com uma cegueira auto impingida de alto risco de contágio social. Grave mal de aparência inofensiva, mas que leva ao completo ressecamento de valores de quem o contrai.

     O cenário é assustador aos meus olhos. Temo que a seguir por esse caminho, sejamos todos seres de olhos vazados, destruídos pela ignorância e falta de empatia humana, engolidos por líderes vaidosos e ávidos pelo poder.