domingo, 10 de março de 2024

O machismo está sentado ao lado


O lobo se cobre com a pele de cordeiro, e todo vaidoso se admira em frente ao espelho sentindo-se dócil e bonzinho como se ele realmente fosse um cordeiro. Pois é assim que eu vejo quantidade de machistas circulando por aí, com discursinhos subjetivos e superficiais defendendo a mulher na sociedade, mas que, diante de qualquer situação concreta, logo descarrega uma mala de culpas, pesadas como uma muralha de pedra, às costas da mulher, heroína mulher que se desdobra em mil na luta diária para se afirmar e sobreviver nesse mundo desigual, desrespeitoso, estereotipado, discriminatório, mundo que ainda se regozija pela supremacia masculina.

 Confesso que meu sentimento hoje é de rebeldia, é de fera ferida, é de mulher que bate no peito, com força e coragem, a defender o seu direito de ter-se reconhecida pelo seu imenso poder de transformação. Meu sentimento hoje é de enfrentamento, é de combate aos esforços machistas de nos diminuir, nos calar, nos sufocar, nos culpabilizar, nos anular, nos aprisionar, nos ofender, nos agredir, nos matar... como mulheres.

Hoje estou ofendida diante desse indigesto mundo masculino, no qual machistas mal disfarçados de aliados das causas por igualdade e justiça, dizem o que bem entendem, e julgam sem critérios para desqualificarem as mulheres.

E justamente no dia 8 de março, dia para reconhecer as lutas históricas das mulheres por igualdade de gênero, igualdade de direitos e oportunidades, dia de luta contra a violência à mulher, e a qualquer tipo de discriminação, hoje eu me senti profundamente agredida como mulher.

Eu explico.

Hoje eu tive uma conversa informal com um amigo... ou será que eu me enganei? Pensei que fosse, mas ele era um lobo...

Diante da exposição de uma problemática de saúde emocional e comportamental de um jovem, apresentada por mim a esse amigo-lobo, eu tive que ouvir, atônita, a pobre e rudimentar análise feita por ele, considerando apenas um único aspecto do complexo problema, calçado em um argumento da ciência jurídica usado de forma rasa e limitada, na qual, sem pestanejar, aproveitou a primeira oportunidade para culpabilizar uma mãe: 

A doença emocional do jovem era culpa da mãe, pois sendo os pais separados, a mãe teve mais tempo de convívio. Simples assim! 

Um pai ausente, ou um pai agressor à figura e à imagem dessa mulher, mãe, não impacta sobre um filho? Por outro lado, uma mãe sobrecarregada com dupla jornada de trabalho, com mais filhos, com suas lutas para progredir profissionalmente, para oferecer melhores condições econômicas à família, nada disso necessita ser considerado na busca por entender um problema? E o grupo familiar como um todo, ou a escola e a sociedade, ficam plenamente eximidas? Isso, sem considerar possível pré-disposição biológica ou hereditária como fator coadjuvante de qualquer problema. Não, não não!!! É lógico que a culpa é da mãe.

Gente, ainda hoje, isso?

Não, a culpa não é da mãe!!! 

A mãe tem responsabilidade, sim, mas o pai também tem responsabilidade, tanto quanto. A pequena e grande família têm lá suas responsabilidades diante de um problema emocional e comportamental de um jovem, a escola também tem sua parcela de responsabilidade, a comunidade tem responsabilidade assim como a sociedade também tem. Inclusive, o próprio jovem pode ter responsabilidade pelo seu problema. A mãe não é a culpada por tudo, mesmo que ela tenha tido mais horas com os seus filhos. Por que não cogitar que essa mãe pode ser uma vítima, e não a algoz diante do problema, pois sabe-se lá qual a influência que todos os outros elementos tiveram sobre o distúrbio do jovem? A mãe teve mais tempo com o filho, mas, e a falta de tempo do pai não incide em sofrimentos ao filho? A negligência, ou o abandono, não pode adoecer um filho? E as possíveis agressões físicas ou psíquicas, vamos deixar de lado?

Com certeza, nós mulheres precisamos de mais empatia por parte da sociedade, e mais visibilidade às nossas reivindicações para alcançarmos um mundo mais equilibrado e justo para todos.

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Sem fim

Tudo começou quando, um dia, ela olhou para mim sorrindo e disse para eu chamá-la de avó! Se ela brincava, eu não sei, mas daquele momento em diante passei a chamar a d. Groselha de vovó. Eu não tinha 10 anos ainda.

Eu gostava da vovó Groselha, ela era muito carinhosa e cuidava bem de mim em muitas ocasiões em que a minha mãe trabalhava, mas às vezes ela era quieta, distante e parecia ter pouca paciência ao não responder as pessoas e suspirar profundo por qualquer coisa. Ela era um pouco velha, mas não muito.

Sempre soube que vovó Groselha era muito braba, mas foram poucas as vezes que a vi furiosa. Ainda bem, porque era de dar medo. Nessas ocasiões ela falava alto, gritava, e por longos minutos. Também gesticulava bastante. Os olhos atrás dos óculos ficavam maiores e meio vermelhos. Ela ficava feia. Quando vovó se acalmava, ela continuava com a cara de braba, só que parava de falar. Aí ficava calada por um tempão.

Vovó Groselha era mais legal do que esquisita. Ela parecia muito certinha, e se vestia sempre fora da moda.  Era bonita quando sorria e conversava comigo. Vovó ficava feliz quando preparava lanches gostosos, mas eu não gostava de ter que lavar a minha louça depois. Ela tinha filhos adultos, pai e mãe bem velhinhos, e uns irmãos que incomodavam e faziam a vovó Groselha chorar mesmo quando eles não apareciam. Eu acho que eles eram maus, mas a vovó dizia que eles eram loucos. Não sei bem, mas um dia eu acredito ter visto a vovó resmungando sozinha, e aí  ela dizia que os irmãos eram viciados.  Na verdade eu só conheci um deles, e esse irmão pintava os cabelos de preto, o que ficava estranho porque não combinava com a cara dele. Ele era agitado e caminhava como se estivesse se escondendo, ele tinha cara de louco, mesmo... Em compensação, vovó Groselha tinha uma irmã bem legal, muito falante e alegre, que vivia numa espécie de zoológico com um monte de animais. A tia Nana morava fora da cidade, mas não muito longe. Ela vinha muitas vezes dar uma força para a vovó Groselha, principalmente depois que a mãe das duas foi para o céu, e deixou o namorado dela, como ela mesma sempre contava, aos cuidados da vovó Groselha e da tia Nana.

 

Pois então, tia Nana sempre fala que tudo começou quando a mãe da vovó Groselha, que era uma velhinha bem velhinha e muito bonita, e simpática e muito feliz, e também o pai, que era um velhinho muito na dele, começaram a ficar doentes. Toda hora um ou o outro, e teve vezes que os dois ao mesmo tempo, tiveram que ir para o hospital. Vovó Groselha corria de um lado  para o outro para cuidar dos pais bem velhinhos, da casa deles, do dinheiro deles e de tudo que era deles. Sozinha, a coitada! Por causa disso ela teve que contratar gente para ajudar. Vovó Groselha vivia nervosa, cansada e com olheiras escuras caídas no meio do rosto. Ela dizia que não conseguia mais ver os amigos, ir à ginástica, e o pior, não lia mais os livros de que tanto gostava. Mas eu sei que cuidar dos seus pais fez com que ela não conseguisse mais trabalhar direito. Não tinha tempo. A sorte é que nessa época ela conseguiu se aposentar, e assim ela não ficou sem dinheiro. Nessa época a minha mãe foi contratada e ajudou a vovó Groselha no cuidado dos pais.

 

Mas minha mãe disse que tudo começou quando a vovó Groselha descobriu que não ia conseguir ter netos, isso porque os filhos dela estavam encalhados. Eles não tinham nem namorada, e assim eles não iam poder casar e ter filhos. A vovó Groselha queria muito ter netos, dava dó de ver como ela queria. As pessoas do condomínio, que gostavam bastante da vovó, acabavam emprestando os seus netos para ela ser, um pouquinho, avó também. Desse jeito ela foi conseguindo ter uma família de netos. Era engraçado como ela ficava contente de ter os netos das vizinhas como seus. Eu sempre soube que as pessoas adotavam crianças quando queriam ter filhos, mas essa foi a primeira vez que eu vi alguém adotando netos. Foi assim que eu também ganhei a vovó Groselha como avó, e por causa disso, de brinde, vieram uns tios emprestados. O filho mais velho da vovó Groselha era um tio bem legal, até me emprestou um computador. Vivia querendo saber dos meus temas do colégio e, volta e meia, mandava eu colocar casaco ao primeiro ventinho que soprava.

 

Foi ele quem me contou que tudo começou quando a vovó decidiu não ter mais marido. Ela teve três casamentos e três filhos, aí decidiu que gostava mais de ficar só com os filhos. Ela nunca falava dos pais dos filhos, e parecia realmente que eles não faziam falta na vida dela.  Vovó Groselha dizia que a casa tinha ficado com gente demais, e como, segundo ela, “não se despacha os filhos”, ela despachou os maridos. Sozinha ela era feliz: trabalhava e inventava coisas para fazer, sorria e dançava, escrevia inspirações, viajava para estudar e para se divertir. Parecia um passarinho livre. Diziam que ela foi tímida na adolescência ou até um pouco depois, mas quem via a vovó nessa época só enxergava uma pessoa cheia de alegrias e realizada. Vovó Groselha me contou que na década dos cincoenta anos ela nunca chorou, que não teve nem meio motivo para ficar triste, que tudo era só felicidade. Parece que ela começou a chorar, e bastante, foi depois que fez sessenta... O que será que aconteceu nesse aniversário?

 

Recentemente, no último aniversário da vovó Groselha, e depois de eu fazer 13 anos, a própria vovó foi quem disse como tudo começou. Ela realmente sabia. Nessa ocasião os filhos dela resolveram fazer uma festinha de aniversário surpresa, e chamaram só  eu e a minha mãe. 

Há alguns anos, quando a mãe e depois o pai da vovó tinham morrido, os irmãos dela, que eram maus, ou loucos ou viciados, continuavam só querendo infernizar a vida dela e dos parentes. Vovó Groselha decidida, então, assinou uns documentos, deixou os filhos se incomodando no lugar dela e fugiu. Sumiu. Por algum tempo ninguém sabia onde ela estava, e se alguém sabia, não contava. Ela foi morar num paraíso no meio do mato, longe de tudo e de todos, mas não muito longe, agora eu sei, porque a gente indo de carro chega lá em menos de duas horas depois de sair de casa.

Chegamos ao esconderijo-paraíso num dia frio, mesmo com o céu sem nuvens e o sol brilhando no alto. Vovó Groselha usava um vestido colorido de mangas compridas e até o meio das canelas, bem soltinho, e com um agasalho de tricô pendurado nos ombros. Ela parecia que esperava pela nossa surpresa. Vovó estava mais velha, mas tão bonita... tão mais bonita do que eu lembrava! O cabelo estava esbranquiçado, comprido e preso para trás, os lábios pintados de um rosa escuro, e um perfume de flores que não sei se era dela ou de tudo em volta. Nesse dia eu descobri que a vovó Groselha tem nome de fruta, e que o suco dessa fruta é maravilhoso. A casa dela era pintada de verde claro e rodeada de limoeiros e laranjeiras, e mesmo não sendo grande, tinha uma varanda linda com redes penduradas.  Na sala cheia de quadros a gente via a cozinha com churrasqueira, o fogão a lenha, e a mesa pronta para o almoço. Tudo arrumadinho de um jeito que era a cara dela, sem ter o que pôr nem o que tirar. Toda feliz ela disse que a gente iria inaugurar a churrasqueira naquele dia.

Ainda com todos nós sentados à mesa, e o último espeto de carne sendo servido aos mais gulosos, em meio a uma falação alegre dos tios, vovó Groselha disse com ar pensativo e um meio sorriso no rosto:  “...e dizer que tudo começou quando eu nasci...”

 

 

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Eu vou contar

Foi assim:

A ideia de cuidar de idosos transitava no pensamento sem foco definido desde o curso de psicologia. Porém, foram os idosos que me chamaram a materializar esse trabalho e a assumir minha missão. Foram os grupos de terceira idade, sedentos por descobrir mais da vida e de sua faixa etária, que me chamaram a palestrar. E para cumprir com responsabilidade às suas solicitações, com gosto eu me aperfeiçoei fazendo o mestrado em gerontologia.

A proposta evoluiu de palestras para o atendimento de idosos em consultório, e logo após para a criação da empresa de cuidadores de idosos. O nome “Rosinhas Cuidadores” foi inspirado na Rosa, gerontóloga, e na minha mãe também Rosa e idosa. Hoje somos todas “Rosinhas”, cuidadoras que se dedicam aos idosos com o máximo de competência profissional e com a amorosa dedicação de filha.

Tínhamos teoria, mas precisávamos construir caminhos. Aprendemos com os desafios e os erros. Fomos persistentes diante dos obstáculos, e tivemos no tempo um bom aliado. Implantamos o nosso jeito de cuidar dos idosos. Desenvolvemos acuidade ao olhar a pessoa na sua integralidade: com sua história de vida valorizada, suas relações afetivas consideradas, seu contexto social, espiritual e emocional como referência, além da atenção ao seu corpo e sua capacidade cognitiva.

Hoje é assim:

Rosinhas Cuidadores desenvolveu sua própria  forma de cuidar, e continua investindo em evolução e aperfeiçoamento. O idoso e seus familiares são nossas prioridades, por isso os cuidadores são acompanhados diariamente nas suas ações com os idosos, recebendo constante supervisão e orientação.

Na coordenação, fazemos a interlocução entre os familiares, os cuidadores e os idosos, visando que os idosos, junto com os seus, reafirmem, reencontrem e/ou ressignifiquem o sentido da vida diante da longevidade alcançada, e a desfrutem da melhor forma possível.

Rosinhas Cuidadores, é o amor que nos move!

 

 

Ser idoso

Prestem atenção!

Ser idoso é diferente de ser criança, mesmo quando a pessoa idosa apresenta um comportamento inseguro, indefeso, dependente e carente.

Ser idoso é diferente de ser adulto jovem ou de meia idade, porque a pessoa idosa já cumpriu com suas obrigações de subsistência, social e de produtividade.

Ser idoso é estar diante de uma nova etapa de vida, desconhecida e desafiadora. É trazer na bagagem muitos acertos mas também infinitos erros, e apesar de todos os equívocos, ser digno de respeito, amor, perdão e compaixão, e se não por outros motivos, por desbravar caminhos e abrir perspectivas às nossas vidas futuras.

Observem.

Ser idoso é emprestar-se aos mais jovens como exemplo a ser seguido e aperfeiçoado, ou como referência a ser modificada e superada.

Cuidem.

Não julguem os seus idosos diante de suas imperfeições e a revelia de seu contexto histórico, façam melhor no trilhar de suas vidas.

Sejam melhores!

quarta-feira, 12 de maio de 2021

Não, não é...

 

Não, não é dor. É uma tristeza inexplicável que circula na corrente sanguínea; uma tristeza bombeada por um coração triste a espalhar essa tristeza aos recônditos pontos do meu corpo, do meu ser. Inclusive, contaminando o meu cérebro tão capaz e abalando-o na sua estrutura. Mesmo ele que sabe das coisas e entende, ele que já me confortou infinitas vezes, e que, desta,  acolheu e até desejou que os acontecimentos tivessem o  desfecho que tiveram, pois era certo de que não havia perspectiva melhor.

Não, não é dor, é só uma tristeza inexplicável que domina meu coração, e que o faz chorar como um bebê faminto, aos berros e desconsolável. Hoje o meu coração triste não escuta ponderações, não quer saber da lógica da vida. Ele, debulhado em lágrimas, quer apenas as lembranças do amor de mãe em abraços quentinhos e beijos docinhos...

Ah, mãe!!! Como está difícil ter presente a tua ausência fazendo aniversário. Eu sei que tu estás e sempre estarás em mim, mas sinto muita-muita saudade de te ter em ti... comigo.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Filhos idosos, pais muito idosos

 

As aventuras e desventuras dos adultos de meia idade e idosos acima dos 60 anos é tema de suma importância nos dias de hoje. São pessoas que frequentemente continuam dando suporte emocional ou financeiro aos filhos adultos, colaboram no cuidado dos netos, mantêm-se atentos às demandas do parceiro afetivo, administram a profissão, a casa, e minimamente os compromissos (formais ou informais) com o condomínio, vizinhos, clubes filantrópicos etc. E, para além desses compromissos, sem abandonar-se e/ou maltratar-se pela sobrecarga, ainda necessitam assumir a nova responsabilidade de cuidar dos pais muito idosos, geralmente já com restrições na saúde e exigindo cuidados especiais. Pais muito idosos que não conseguem mais gerir a casa com suas demandas, nem seus recursos financeiros e o próprio dinheiro, tão pouco os cuidados básicos com a saúde.

 

Uma geração de pessoas à beira da velhice destinada a viver super-ações. São adultos super exigidos, super dinâmicos, super estressados, super promissores, super incompreensíveis, super amorosos, super e super tantas outras coisas.

 

Observação: Eu estou nesse grupo de jovens idosos em “SuperAções”, apenas não tenho netos, o que é uma lástima, pois eu adoraria...

 

Sobre as desventuras dessa nossa geração, não é preciso se alongar, é fácil imaginar. O cansaço domina, o desânimo se apresenta intermitente, a sobrecarga por vezes faz a pessoa querer desistir de tudo. E o pior, volta e meia surge um sentimento crescente de abandono ou solidão em meio a tudo.

 

Mas todos os infortúnios podem tornar-se pequenos diante das possíveis e gratificantes surpresas ao se cuidar dos pais muito idosos. Responsabilidade geradora de experiências inexplicáveis, inomináveis. Principalmente quando nós como filhos abrimos novas perspectivas para reestabelecer, requalificar e/ou reinventar as relações históricas que tivemos com os nossos pais, nem sempre muito afinadas ou felizes durante o tempo pregresso. O convívio no percurso da vida costuma produzir incompreensões, ressentimentos e impaciências dos filhos com seus progenitores (e vice e versa), críticas imperdoáveis aos seus defeitos e chatices, quando não a breves e escassas manifestações de carinho. Porém, de repente os pais não ordenam mais, eles choram ao pedir; os pais não são mais a fortaleza que representavam e se derretem mandando beijinhos assoprados; eles tornam-se tão doces e tão escancaradamente encantados com os filhos cuidadores que até dá remorso guardar qualquer gota de ressentimento. Muito presenciei dessas cenas no meu trabalho com as cuidadoras de idosos.

 

Mas não é fácil chegar nesse estágio, eu asseguro. Outro dia vi a postagem de uma idosa filha pedindo para não ser julgada por cuidar de má vontade da sua mãe hospitalizada. Certamente uma mãe que não correspondeu aos seus anseios ao longo da vida.

 

Se nós como filhos interpretarmos que nossos pais muito idosos são apenas fonte inesgotável de problemas e preocupações, ou que a existência alongada dos pais só aumenta pesarosamente as nossas demandas; se como filhos idosos não entendermos a magia de expandir os limites do papel de filho nessa vida de tantas voltas, ou não conseguirmos, de coração aberto, redescobrir nossos novos velhos pais; os ressentimentos se nutrirão com o peso que daremos à relação, e provavelmente tais sentimentos esvaziarão afetos dos mais relevantes, como de nossos filhos e netos.

 

Eu falo mergulhada na plenitude dessa experiência nos âmbitos profissional e, acima de tudo, pessoal. Sugiro aos filhos, idosos como eu, que atendam as obrigações com os seus pais muito idosos, e jamais percam a infinita capacidade de amar que trazemos em essência no âmago do nosso ser. Dessa forma não sofreremos com culpas internas nos amargurando, ou com culpas projetadas (em quem quer que seja) nos arranhando.

Hoje eu tenho com o meu pai a relação mais incrível, mais pura e honesta, e os momentos mais amorosos de nossas vidas, apesar de todas as limitações que o presente nos impõe.

 

E as imperfeições da nossa história... Evaporaram!


terça-feira, 4 de agosto de 2020

PASSEIO NA PRAIA

 

Praia deserta, os murmúrios do mar

Gritam, preenchem todos os espaços.

No alto o sol ilumina, propaga-se,

Mas não aquece, a brisa é fria.

Eu caminho nas areias úmidas, choveu à noite,

O mar está gelado. A natureza é excessiva.

Mas a beleza vem com ressalvas,

Há perversão na alienação destrutiva do ser humano.

Latas, embalagens, garrafas pet, tocos de cigarro,

E demais lixos mancham as areias brancas.

Despejos pluviais escorrem sucessivos

Encharcam e carregam as areias da praia

Que sangram pelo descaso...

Tiro os óculos e perco a nitidez da imagem

Ela não se perde de mim, se mantém

Beleza brilhante, reluzente, apenas capturada com efeito,

Ou defeito.  A praia é exuberante a todos os sentidos,

Comove mesmo se, apenas, eu a respirar.

Apesar do meu desconsolo com a negligência humana

Nada me faz mais feliz do que estar aqui, nessa imensidão

Sedutora. O mar brinca em movimentos espumantes

Provoca, busca tocar os meus pés, mas antes de alcançá-los

Recolhe-se discreto, como se por timidez.

 

 


segunda-feira, 3 de agosto de 2020

DEVANEIOS NOTURNOS


Pensamentos perturbadores povoam e se agitam na mente,

Enquanto o corpo mantém-se inerte e jogado sobre os lençóis frios.

A noite avançando na madrugada expõe um silêncio,

O silencio da cidade em coma profundo.

Estou perdida em mim, ou de mim?

Pálpebras, antes cerradas, agora completamente erguidas.

Olhos secos, ingurgitados, não de choro, mas de loucura.

Verdades e mentiras se entrelaçam não fazendo sentido

No jogo de luzes e sombras pervertem-se as noções de certo e errado

Verdades escapam, iludem. Desintegram-se.

As verdades são etéreas, são múltiplas, contraditórias...

Verdades falsas. Sobram as mentiras que acredito

Mentiras que explicam e se consolidam, que nos expõem,

Mentiras que me traduzem. Verdadeiramente?


sábado, 1 de agosto de 2020

Estrada paraíso


De uns tempos para cá, por questões pessoais mescladas com reminiscências profissionais, vejo-me exigida a passar de carro com frequência pela mesma estrada, indo e vindo sozinha.

E só, me delicio como na primeira vez.  Sinto indescritível fascínio ao ver as ondulações da serra no horizonte, o espelhar do vasto lago, o tom verde escuro das árvores à distância contrastando com o verde vivo da natureza próxima, e a via discretamente sinuosa. Além das características hipoteticamente estáticas, sutilezas vão dando personalidade à paisagem conforme a hora do dia, as condições do tempo e a estação do ano.  

O carro desliza com a velocidade reduzida pelo meu encantamento. Vou fotografando mentalmente cada seguimento do percurso para não perder nenhum detalhe, para não correr o risco de desperdiçar a mínima sensação de prazer. Toda vez é assim, não importam os motivos nem a pressa que me justificam, naquele momento eu saio do meu mundo exigente e me abandono ao êxtase dos escolhidos. Sinto a magia de ser parte, e de ter tudo.

Pelo trajeto elejo recantos nos quais eu poderia viver eternamente. Aproprio-me destes pequenos universos em trânsito sonhando moradias e estilos de vida, inventando destinos aos meus personagens mais íntimos, secretos e exóticos. E como fundo musical aos improvisados roteiros, costumo cantarolar sons em arranjos leves e desconexos que se compõe na alma. São minutos de pura poesia que me revigoram após infortúnios que tive em horas ou dias pregressos, ou que me fortalecem aos duros enfrentamentos que virão nas horas ou dias futuros.

Os compromissos me levam à estrada. O caminho se faz paraíso.

Meu epílogo: Do paraíso os meus diversos “eus” trazem noticias tuas. E sozinha, na estrada paraíso, sinto a tua presença irradiando o meu presente. E me inspirando.


quinta-feira, 23 de julho de 2020

CARTA A UM AMOR



Xangri-lá, um dia qualquer de julho.


Há meses sobrevivo sem notícias tuas.

Ontem decidi escrever inspirada por uma poetisa que escrevia cartas. Eu não sou poeta, minhas pretensões são modestas, mas consigo. Escrevo uma carta para ti, amor que foi, e se foi; amor que sempre será, e estará em mim. Foi ontem que eu decidi escrever essa carta para ti. Será que ela te encontrará? Que tu a lerás? Não me iludo quanto a tua improvável resposta.

Sempre soube que o tempo, por mais longo, se faria nostalgicamente breve. Assim, naquela noite de agitação inconsciente, dentro deste tempo que se esvaía e frente à derrocada dos teus medos, dúvidas e ambivalências, eu sussurrei repetidas vezes ao teu ouvido: “Vai. Segue o teu caminho. Fica bem!” Lembras? Quando acordei no meio da madrugada, de sobressalto, eu soube que havias partido. Ainda pude sentir o calor do teu corpo, a sensação da tua presença, mas eu sabia, havias partido. E não chorei, eu sabia. Tu havias me escutado.

 Falaste em partir tantas vezes, mas as crises passavam, tu te acomodavas e ficavas. Eu me preocupava contigo, ficava triste pelas tuas tristezas, mas tu estavas sempre tão profundamente presente e atuante em tudo o que te circundava, que eu nunca antes pensei realmente em despedidas.

Agora estou sozinha, fugida para me encontrar contigo. O tempo por aqui tem se excedido em chuvas. Aguaceiro que transborda rios, que alaga cidades e invade casas.  Meus olhos estão encharcados, cansados, tristes. Saudosos. Por aqui tem pandemia, gafanhotos, inundações, e um vazio inominável de ti.

Engraçado, eu preferia a intimidade da família e da casa, e tu gostavas da sociabilidade dos grupos em reuniões e festas. Mas tu partiste só e me deixaste em meio ao acolhimento de grupos diversos. Quem diria. Lembro com gratidão da nossa parceria, das confidências, das nossas diferenças tão harmoniosamente administradas.

Por aqui sigo com os projetos que me apoiavas, sigo com a vida cheia de compromissos que te queixavas, sigo simplesmente, sem muito lembrar. Mas há momentos que se constroem inesperados, em que o soluço pula da garganta e o choro se derrama convulsivo. Nessas horas sinto uma imensa falta de ti, como se uma parte de mim estivesse extirpada. O ar se escassa. As lágrimas jorram e se gastam, secam, mas nada além da exaustão impede que o choro se acalme. Sinto falta, sinto tristeza, sinto que a vida continua apesar da tua ausência. Então eu prossigo com os projetos que me apoiavas, prossigo com a vida cheia de obrigações que te queixavas, e prossigo na vida, simplesmente como deve ser.

Com certa frequência pessoas falam em ti, mas eu não gosto de ouvi-las. Não quero que a impressão delas corra o risco de alterar qualquer detalhe das minhas lembranças. Quero te guardar conforme as minhas vivências, te enaltecer nas minhas fantasias, quero esquecer todos os teus defeitos. Para mim tu sempre estarás na tua melhor versão. Adoro ver teus olhos verdes e teu sorriso largo nas imagens gravadas na memória.

Sei que tu não voltarás para mim, assim como eu não irei atrás de ti. Nesse momento histórico trilhamos por rumos diferentes, mesmo assim, incomunicáveis fisicamente, percebe como eu te amo, eu te amo tanto... E te amarei até meu último suspiro, tenha certeza disso. E a partir do amor que não se esgota, amarei novos amores, construirei novas relações, sofrerei decepções, enfrentarei problemas, sorrirei de encantamento. Tudo será igual, e diferente. Tenho bagagem, eu aprendi contigo.

Amar será sempre o meu consolo às despedidas. Eu continuarei te amando, me amando, amando os que estão e os que virão. Fica bem, grande amor da minha vida, segue o teu caminho sem olhar para trás, eu estou bem... E ficarei melhor. Um pouco melhor a cada novo dia que vier.

Posso te escrever mais uma vez?


domingo, 15 de dezembro de 2019

Ousadia



Nos últimos quarenta anos eu mudei muito... Fisicamente ainda guardo alguma semelhança de quem fui, mantendo leves traços de um tipo, o meu tipo, hoje enfeitado por gorduras e rugas e manchas na pele, além de adereços como o que carrego frente aos olhos.

Neste punhado de décadas transcorridas, gangorra de acontecimentos, incontáveis mudanças impactaram em mim gerando transformação. Hoje não sou mais a mesma pessoa de outrora, e por ironia, eu continuo sendo a mesma de sempre. E essas coisas me impressionam pela tão incoerente coerência.

Assim, seguindo caminhos incompreensíveis e improváveis, me deparei com o inesperado.  Após infinitas arrumações realizadas na casa com o intuito de eliminar velharias inúteis, e mesmo depois de submeter-me às mudanças concretas e subjetivas que a vida impôs, eu descobri inúmeras cartas de um passado longínquo, de um amor esquecido, de um tempo mágico e vaporoso. Cartas escritas há mais de quarenta anos que eu não sonhava ainda existirem. Eu guardei as cartas, mas não dei por conta, e desde então não as vi mais.

É o destino agindo? Sou uma acumuladora? Por que tenho guardado essas cartas? Como não percebi que elas estavam comigo todos esses anos, onde quer que eu fosse ou como me sentisse? Esqueci completamente das cartas, mas as guardei, e as carreguei junto a mim. Por quê? Não sei.

E agora, fazer o quê? Primeira coisa que me ocorreu foi compartilhar minha descoberta com o remetente das cartas tão encantadoramente juvenis, mas... para quê? Isso seria ridículo. Por que eu invadiria o presente de alguém com um passado apagado e encoberto com as poeiras da vida? Que direito tenho eu de reivindicar a amizade de alguém que ficou no passado e que não conheço mais? Por que correr o risco de gerar desconforto ou desgosto? Mas, se a situação puder gerar alegria, a mesma que me invade ao cogitar o compartilhamento desse inimaginável fato?

Fui às redes sociais, ainda sem noção do que fazer. Lá encontrei a imagem de um senhor de meia idade correspondente ao nome procurado. Comparando a imagem na tela com a foto 3x4 em minhas mãos, identifiquei o mesmo olhar. O mesmo olhar que eu nem lembrava mais, mas que as cartas me instigaram a procurar.

Desculpa a ousadia, mas ficaria muito feliz de ter notícias tuas.


sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Olhos vazados



     A aspereza dos dias e a rudeza das noites, as relações mal sustentadas pela extrema necessidade, a falta de expectativas diante de um mínimo por vir, além da perda das próprias referências existenciais, vão deixando alguns prontos para a guerra, mas outros,  a maioria deles, estão sendo torturados com o rápido esfriamento dos corpos, das emoções, e...  De suas almas?

     Os olhos de pálpebras caídas não olham mais os outros olhos, mesmo diante de olhos por onde o amor já transitou. Os olhos apagados, enegrecidos, submetidos, não veem e nem mais sabem a quem pertencem, mesmo sendo olhos que um dia sonharam coloridas perspectivas. 

     São povos, seres humanos dizimados diante dos nossos olhos indiferentes ou impotentes. Diante de nossos olhos inseguros, ingênuos, quando não, pobres de espírito. Olhos que desviam o olhar, que se lacram e adoecem com uma cegueira auto impingida de alto risco de contágio social. Grave mal de aparência inofensiva, mas que leva ao completo ressecamento de valores de quem o contrai.

     O cenário é assustador aos meus olhos. Temo que a seguir por esse caminho, sejamos todos seres de olhos vazados, destruídos pela ignorância e falta de empatia humana, engolidos por líderes vaidosos e ávidos pelo poder.

sábado, 13 de outubro de 2018

O mal fadado beijo

A conversa começou assim, pelo whats:
Ele: “É verdade que ontem tu desligaste tudo às 21 horas? E me deixaste querendo um beijinho?”
Ela: “Tentei ler na cama e mal consegui passar os olhos em duas ou três páginas... Desmaiei de sono.”
Ele: “Eu também apaguei, assim mesmo eu acordei de madrugada. Mas logo voltei a dormir... Só não ganhei o beijo. O beijoooo...”
Ela: “Eu enviei o beijo através do pensamento, mas tu já dormias, e sonhavas com outras praias e gentes...”
Ele: “O beijinho! Ah!?! Ok, tu enviaste o beijo, mas ele deve ter parado em algum Firewall ou em alguma pasta de quarentena... Um beijo mal interpretado como spam... pobrezinho do beijo. Ou... quem sabe? Beijo raptado, “hackeado”, perdido na encruzilhada dos sonhos. Por causa deste beijo, um velho homem ficou sem o seu beijo - incompleto ser, sujeito-metade, perdido no vento. E, os lábios não se tocaram... Nem as mãos. Afastadas... Beijo roubado ou beijo perdido, oh silêncio da dor!”
Ela: “Esqueci de dizer, o beijo que eu te mandei, voltou. Guardei para te entregar pessoalmente.”
Ele: “A entrega pessoal... a demora. O tempo é doloroso. Insuportável. O peito dói, arde... A promessa se cumprirá, eu acredito, mas... sinto a falta do beijo no presente. Ah, dolorosa espera. Na frente, só trabalho, trabalho, trabalho. E o beijinho? Promessas. Demora. O beijo...”
Ela: “Fui às lágrimas. Até o coração duro e forte, da lutadora que sou, se derreteu...”
Ele: “Lágrimas sinceras, por certo. O beijo é sincero, mas não é certo. Certo mesmo é o beijo não dado.”
Ela: “Não estás a duvidar da honestidade das minhas lágrimas, estás? Nem tão pouco da certeza do beijo vindouro! Querido das minhas horas queridas, tu haverás de ter a calma dos anjos para acolher e saborear a doçura dos meus beijos recheados de extremo carinho, e com pitadas de safadeza para acelerar o compasso da dança dos corpos. A incerteza gera expectativa, e esta, uma emoção no antes, outra no durante, e mais tantas outras... Soprei beijinhos virtuais para ti neste instante...”
Ele: Espetacular!!! Uma análise pujante, crua, nua! Maravilhosa... Mas o beijo passado foi perdido... sangrou...machucou. Estancou qualquer forma de pensamento. O peito rasgado pelo beijo prometido!”
Ela: “Oh, não me faças chorar novamente, temo que meus beijos sequem de tristeza frente a tanto sofrimento.”
Ele: “Um pranto sem fim. Lábios sem beijo. Peles que não se tocam... ‘Se seus sonhos estiverem nas nuvens, não se preocupe, pois eles estão no lugar certo; agora construa os alicerces’.”
Silêeeeeencio.
Ele: “A minha amada ficou sem palavras...”
Ela: “Sim, completamente sem palavras. E o beijo, pobre beijo, ficou agonizante. Ele bem que tentou e se pôs a imaginar, chegou a ver-se enterrado no fundo de um buraco a construir seus alicerces. Depois se imaginou sobre andaimes a construir paredes firmes a enquadrá-lo às formas de viver no mundo. O beijo sentiu falta de ar e tonteou, e logo em seguida, uma sensação de inadequação e embotamento. Desesperado e longe de sua doce e mágica nuvem, tentou suicídio ao atirar-se da vida formatada. Beijo é sonhador, flor é sonhadora, ambos agoniam-se diante dos cálculos quase prefeitos da construção bem amarrada. Sim, sem palavras, sem sonhos, sem doçuras...”
Ele: “A saudade arde no peito. O clamor do beijo adormece...”
Ela: “Adormeceu. Velando o beijo. Ele morreu.”
Ele: “Morreu? Velório? Quanta morbidez!!!”

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Como pode


Não sei como, nem exatamente em que momento, mas me tornei uma atleta da vida cotidiana. Estou sempre correndo - para cima, para baixo, e de um lado ao outro - em crescente aceleração. Dessa forma venho baixando meus tempos na execução de tarefas e, naturalmente, aumentando o volume de compromissos e de correrias. Inclusive, superando diariamente minhas próprias marcas. Treino praticamente todo o tempo útil do dia, o que me permite alcançar desempenhos comparáveis aos de atletas de alto rendimento. Ainda não sei o nome desta modalidade esportiva, nem como me inscrever em competições, mas certamente logo estarei em algum lugar dos pódios. Às vezes ainda me pergunto, qual há de ser o prêmio?

Assim, entre o montante de correrias, ontem entrei ligeira no ônibus e sentei-me agilmente ao lado de um senhor idoso que estava à janela lendo o seu jornal. Preocupada em cumprir meus agendamentos no tempo estipulado, queria saber a exatidão da hora. Sem relógio, e temerosa de pegar meu celular da bolsa pelo risco de assalto, fiquei sem acesso aos cronômetros do tempo.  

Porém, percebi que o idoso carregava seu relógio no pulso. Com o canto dos olhos procurei localizar os ponteiros, mas não conseguia enxergar nada - o fundo, os números e os ponteiros se embaralhavam no chacoalhar do ônibus e diante da minha vista cansada. Apertei os olhos em busca do foco, mexi com a cabeça e olhei pela janela para disfarçar, voltei a fixar meu olhar ao relógio do senhor, apostando na capacidade de ser discreta. Inesperadamente o idoso me repreendeu, em voz baixa e entre dentes: “A senhora quer roubar-me as horas?”

Congelei. Como assim? Absolutamente a pergunta não fazia sentido. Eu apenas espiava para me inteirar das horas. Levantei a cabeça, mas não consegui subir o olhar. Algo me deixou estranhamente constrangida. E através da minha fala baixa e suave lhe respondi. “O senhor aproveitaria mais as suas horas se as compartilhasse com alguém, ou as doasse.” E ele com firmeza na voz: “Me peça as horas, que eu lhe empresto”. “O senhor não entendeu, libere as suas horas e brinque com o tempo. O senhor poderá ser mais feliz.” Já em tom mais suave, e sempre em voz baixa: “É o que a senhora faz? Por isso deixou seu relógio em casa e estava se distraindo com o meu?” “Não senhor, me desculpe.” “A senhora quer saber das minhas horas?” “Sim, por favor.” Já em tom de brincadeira ele começou a falar. “Saí de casa às 9h, sem rumo e sem compromisso, para lhe encontrar nessa breve viagem até o centro da cidade às 9h e 25min. Farei algumas visitas sem importância entre 10 e 11 horas. Depois, devo retornar às 11 horas e 30 minutos e adoraria lhe encontrar na viagem de volta.”


Com esse descaramento todo, levantei os olhos e encontrei os seus a zombarem de mim. Não tive como ficar ofendida; o senhor idoso brincou com a minha aflição e, do seu jeito divertido, mostrou, sem intenção, minha própria contradição. A superatleta da vida cotidiana, correndo atrás de cada minuto para ganhar sabe lá o quê, teve o desplante de sugerir que ele agisse desapegado às horas e que dispusesse do tempo de forma lúdica a fim de desfrutar de maior felicidade. Como pode?



segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Os incomodados que se retirem



Desde que me conheço por gente, nas pequenas rivalidades e desavenças com os irmãos, ouço de forma recorrente que “os incomodados que se retirem”. E sempre achei razoável a proposta, por isso, com muita naturalidade fui deixando tudo o que me incomodava para trás. Mas hoje me vejo sem saída. Se eu me retirar dos ambientes e das relações que me incomodam, não terei para onde ir e, pior que isso, cairei em estado de isolamento. Sim, estou fortemente convencida, eu não encontrarei um clube, um partido político, ou um país que me acolha, que me represente ou me entenda como desejo. Não conseguirei estar nem entre as pessoas que estimo, pois me desconforto à falta de diálogo diante dos intolerantes embates na defesa de verdades pessoais, assim como me inquieto ao nefasto risco de ser alvo das pequenas e grandes trapaças por quem me rodeia. Ou ainda, porque está difícil administrar o popular, pouco ético e tão brasileiro, “jeitinho” de levar vantagens sobre os outros.

Estou chateada, inconformada, quase revoltada. Gostaria imensamente de me retirar diante da quantidade de incômodos, como eu sempre fiz, mas dessa vez não dá, mesmo que a ideia continue a me seduzir. Meu discernimento aponta para duas saídas: ou me retiro da vida por falta de lugar ou companhia para mim (o que realmente não cogito), ou enfrento o que me assola encarando as provocações que a vida me submete. Sem uma saída confortável, hoje decido diferente, e brado em alto e bom tom a minha nova posição: “Daqui não saio, daqui ninguém me tira.” Não darei mais as costas às coisas que me incomodam. Enfrentarei os dissabores com determinação, lutarei contra os infortúnios através dos recursos da inteligência, apesar da emoção por vezes atrapalhar as lógicas da razão, e me valerei da experiência para descobrir alternativas minimamente eficientes diante de tantos reveses. Ah, sim, dessa vez a incomodada não se retira.

Quando eu pensaria que aos “sessentinha” estaria com tantos problemas, e da mais ampla natureza, a desafiarem a ordem estabelecida e consagrada pelos razoáveis resultados? Quando eu acreditaria que, nessas alturas do campeonato da vida, eu ainda seria exigida a desenvolver uma postura muito mais ativa, enérgica e combativa? Agora só falta eu me candidatar para as próximas eleições. Isso seria revolucionário.


sexta-feira, 21 de abril de 2017

Envelhecer de forma saudável


O envelhecimento é dádiva da vida e, nos patamares atuais, uma grande conquistada da ciência. Naturalmente que a saúde também decorre dos avanços científicos, além de outros fatores, mas ela depende bastante dos esforços individuais - de atitudes positivas e proativas frente à própria existência.

A saúde que aqui me refiro, não é o estado de ausência de doenças, é uma condição geral do indivíduo que o permite desfrutar de seus momentos com razoável bem estar e qualidade, apesar das doenças previsíveis e/ou imprevisíveis a que todos estamos expostos ao simples fato de estarmos vivos.

A informação obtida e facilmente propagada a partir do desenvolvimento das ciências é imprescindível, e uma forte aliada para a promoção da saúde, porém é de pouca serventia ter conhecimento se dele não fazemos uso.

Quem dentre nós ainda não sabe:
- que se deve comer colorido, em quantidades e intervalos pequenos, e sempre controlando a ingesta de açucares e gorduras?
- que se deve fazer atividade física sistematicamente?
- que se deve evitar o sol entre 10 e 16 horas, principalmente no verão?
- que se deve ler ou estudar regularmente, inclusive em idade avançada, para exercitar a inteligência e a memória?
- que se deve fazer exames médicos anuais a partir da meia idade?
- que se deve evitar a ingestão de álcool antes de dirigir?
- que se deve evitar ambientes e relacionamentos hostis e beligerantes?
- que, enfim, é melhor prevenir do que remediar?
Quem não sabe?

Mas, quantos de nós, mesmo sabendo dessas e de outras informações praticamente óbvias, continua a não cultivar os bons hábitos recomendados à vida saudável? Certamente somos muitos a nos justificar através de pequenas ou falsas verdades. Por vezes, inclusive, através de grotescas mentiras.
Para termos saúde é preciso dar atenção às dimensões da nossa existência. Precisamos cuidar do nosso corpo (atendendo sua abrangência e particularidades); precisamos cuidar das nossas emoções (administrando com competência sua vasta complexidade); cuidar da nossa inteligência (desafiando-a em suas capacidades); cuidar da nossa sociabilidade (nutrindo permanentemente os laços familiares e de amizade); assim como, cuidar da nossa espiritualidade (independentemente da configuração que ela adote para nós). Será no investimento harmônico e no entrecruzamento dessas perspectivas humanas que tenderemos alcançar maior qualidade na vida e um envelhecimento mais saudável e realizador.

No presente, pinçarei a dimensão do corpo e me deterei na perspectiva da atividade física. A prática do exercício físico tem sido fortemente recomendada por médicos, nutricionistas, psicólogos, naturalistas, professores de todos os níveis, etc. Ela é aconselhada para pessoas de todas as idades, formação, ideologia, raça e condições físicas. E também indicada para minimizar problemas ou evitar doenças.

E para além dos benefícios ao corpo, a atividade física regular também contribui à obtenção da saúde emocional, da saúde intelectual, social, e até espiritual. No entanto, e apesar de tão bem recomendada, a atividade física não tem a adesão que merece. Esse fato é intrigante, e não canso de me questionar: “Por que temos tamanha resistência ao exercício físico, quando todas as evidências apontam a tão grandes e contundentes vantagens?”.  Os pretextos mais utilizados são a falta de tempo ou de dinheiro, a preguiça ou o cansaço, alguma dor ou limitação (nem tão limitante assim). Ou ainda, e lamentavelmente, a crença onipotente de que a falta de zelo com o nosso próprio corpo no presente ficará impune ao longo dos anos futuros.

A partir dessa leitura, tenha coragem, anime-se e decida com determinação, estabeleça objetivos, resista aos pequenos obstáculos e seja um vencedor de si mesmo. Faça atividade física regularmente. Entre para uma aula de dança, caminhe com alguém, jogue ping pong ou bola (com as mãos ou pés), faça hidroginástica ou natação, ande de bicicleta, aprende defesa pessoal, troque o elevador pelas escadas, faça academia. Descubra por qual caminho o seu corpo pode se fortalecer e, por que não, se divertir.

Nunca é tarde para uma pessoa comum aprender e começar uma atividade física adequada a sua condição e preferência, basta que ela tenha boa dose de amor próprio e alguma força de vontade. Aproveite o presente estímulo e se responsabilize pelo seu envelhecimento saudável. Desfrute de qualidade na vida presente e futura, sem culpas nem dívidas para consigo mesmo.

Vamos embarcar nesta proposta? Sem postergações? 

CUIDE-SE FAZENDO EXERCÍCIO FÍSICO A PARTIR DE HOJE.


terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Aventura

Final da tarde.
Sol de verão ainda alto no céu.
Uma praça em meio à cidade com alguns poucos passantes a cruzá-la, com pressa, sem nem ao menos enxergá-la.
E aquele imenso gramado verdejante me puxando e sugando ao seu abraço.
Eu estava ali parado, sentando em um banco no centro de tudo, ou seria a um canto de tudo? Enfim, eu estava ali sem saber por que ou porque não. Mas estava ali. Seduzido pelo verde, ah sim, eu estava; e esvaziado de pensamentos.
De repente uma brisa soprou suave e me atingiu como um furacão e, sem entender, me vi deitado sobre o gramado macio de olhos postos no céu, agora, completamente hipnotizado pelo azul anil salpicado de fiapos esbranquiçados e esgarçados de discretas nuvens a passeio.
O tempo parou, ou passou sem que eu o percebesse, não sei ao certo, essas coisas são tão parecidas. Fato é que eu vi diante da minha inércia, um pequeno ponto escuro a crescer e a tornar-se enorme buraco negro no céu. Medo e pavor foram os sentimentos primeiros. Tentei me levantar, ir embora, fugir, mas estava aderido e confundido ao gramado. Raízes me integravam ao solo? Um buraco crescendo a engolir tudo no alto do mundo. Sem fundo. Imensidão.
Sem encontrar recursos para ação - será que procurei bem? Relaxei. Acreditei que desta vez eu morreria. Ou? Pois não doía. Descobriria um grande segredo do universo ou da vida. Excitei-me a essa ideia, mas percebendo-me paralisado, tentei colocar-me oco de expectativas, afinal, entendi ser o mais sensato à ocasião. Será que eu estaria tendo um AVC? Por que um AVC? Porém o buraco negro avançava e cutucava minhas fantasias. Como seria ser engolido pela escuridão? Será que dela ressurgiria o azul a crescer e crescer em luz até apagar o escuro plenamente, num ciclo permanente de virar e desvirar-se do avesso? Um AVC? O que tem a ver “alhos com bugalhos”?
Sempre de olhos bem abertos na espreita do por vir, em dado instante percebi rostos a me olharem do alto e vozes diferentes a falarem comigo. “Senhor? O senhor está sentindo-se bem?” “Precisa de ajuda?” “Por favor, responda, o senhor caiu ou foi assaltado? Se machucou? Como se chama?” Olhei incrédulo àqueles seres inconvenientes a me roubarem do momento mágico no qual estava imerso, exatamente quando eu descobriria o ponto do recomeço ou o inexorável fim de tudo. “O senhor está bem?”
“Sim, sim, estou bem.” Recusando-me receber a ajuda que meus cabelos brancos pareciam pedir, sentei-me na grama desajeitadamente devagar, me pus de joelhos, e escorando em mim mesmo com as mãos fui me levantando até erguer-me totalmente. Para alegria daqueles estranhos seres estranhos, fiquei de pé a semelhança deles. “O senhor quer que façamos contato com algum familiar? Que alguém venha lhe buscar?” “O senhor sofre de algum mal?”
“Nenhum mal, nenhum mal, simplesmente estou amando. Sim, por favor, chamem a minha amada para me salvar. Ou não, não precisa, irei até ela agora. Vou contar a ela... foi tão interessante.” E caminhando em direção à rua, fui me afastando do pequeno grupo de pessoas preocupadas, que me seguiam com olhos desconfiados, a duvidarem da sanidade deste velho homem apaixonado. O amor faz a gente ficar bobo e louco. E feliz. E criativo e colorido e... Ah, como é bom. O amor, o amor.



domingo, 22 de janeiro de 2017

Minhas?




     OCUPADA COM AS COSTUMEIRAS ARRUMAÇÕES DE INÍCIO DE ANO, ENCONTREI ENTRE MEUS ALFARRÁBIOS UMA FOLHA, LEVEMENTE AMARELADA, REDIGIDA EM RASCUNHO. RECONHECI A LETRA MIÚDA E ARREDONDADA, ERA A MINHA DE TEMPOS PASSADOS, SEM MARGEM DE DÚVIDA ALGUMA. E AQUELAS PALAVRAS... TAMBÉM TERIAM SIDO MINHAS? UMA PRETENSA E SINGELA POESIA, MAS... MINHAS?

"Sensível natureza
naturalmente insensata
criatura criadora
outrora na hora
encanta-me cantá-la
e de encantos tê-la num canto
espremê-la, e em suco bebê-la
laranja, natureza, cereja.
Digníssimo ser
feito luz do amanhecer
aprecio teu cheiro de cio
para dele desfrutar
te possuir como fruta
Parada na boca
desbocada, calada
de tanto salivar
gozo gozado gotejante.
Coisas de amantes."

     TERÃO SIDO? MINHAS?




terça-feira, 5 de julho de 2016

Desabafo

Um dia eu sabia sonhar, 
sabia brincar com os sonhos, 
e escrevê-los e compartilhá-los; 
eu acho que sabia. 
Aí eu quis o vento, que soprou vigoroso e mudou de lado uma 
e muitas vezes, 
o vento que revirou o ontem, o hoje, e talvez até o amanhã; 
eu quis, mas ele me derrubou. 
Então, 
sei lá como ou porquê, 
eu passei a perceber paredes interceptando ideias, 
muros rompendo caminhos, 
buracos obstaculizando esperanças, 
e sem mais, fiquei com menos. 
Mesmo assim, de um jeito ou de outro, eu sentia. 
E ainda sinto. E morro aos pedaços na sequencia das horas, 
seguindo o rumo em passos trôpegos, 
atingida por mentiras 
e trapaças e engambelações que ferem. E me sufocam, 
como mãos que se entrelaçam em torno do pescoço, 
levando tudo ao nada.