terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Como pode


Não sei como, nem exatamente em que momento, mas me tornei uma atleta da vida cotidiana. Estou sempre correndo - para cima, para baixo, e de um lado ao outro - em crescente aceleração. Dessa forma venho baixando meus tempos na execução de tarefas e, naturalmente, aumentando o volume de compromissos e de correrias. Inclusive, superando diariamente minhas próprias marcas. Treino praticamente todo o tempo útil do dia, o que me permite alcançar desempenhos comparáveis aos de atletas de alto rendimento. Ainda não sei o nome desta modalidade esportiva, nem como me inscrever em competições, mas certamente logo estarei em algum lugar dos pódios. Às vezes ainda me pergunto, qual há de ser o prêmio?

Assim, entre o montante de correrias, ontem entrei ligeira no ônibus e sentei-me agilmente ao lado de um senhor idoso que estava à janela lendo o seu jornal. Preocupada em cumprir meus agendamentos no tempo estipulado, queria saber a exatidão da hora. Sem relógio, e temerosa de pegar meu celular da bolsa pelo risco de assalto, fiquei sem acesso aos cronômetros do tempo.  

Porém, percebi que o idoso carregava seu relógio no pulso. Com o canto dos olhos procurei localizar os ponteiros, mas não conseguia enxergar nada - o fundo, os números e os ponteiros se embaralhavam no chacoalhar do ônibus e diante da minha vista cansada. Apertei os olhos em busca do foco, mexi com a cabeça e olhei pela janela para disfarçar, voltei a fixar meu olhar ao relógio do senhor, apostando na capacidade de ser discreta. Inesperadamente o idoso me repreendeu, em voz baixa e entre dentes: “A senhora quer roubar-me as horas?”

Congelei. Como assim? Absolutamente a pergunta não fazia sentido. Eu apenas espiava para me inteirar das horas. Levantei a cabeça, mas não consegui subir o olhar. Algo me deixou estranhamente constrangida. E através da minha fala baixa e suave lhe respondi. “O senhor aproveitaria mais as suas horas se as compartilhasse com alguém, ou as doasse.” E ele com firmeza na voz: “Me peça as horas, que eu lhe empresto”. “O senhor não entendeu, libere as suas horas e brinque com o tempo. O senhor poderá ser mais feliz.” Já em tom mais suave, e sempre em voz baixa: “É o que a senhora faz? Por isso deixou seu relógio em casa e estava se distraindo com o meu?” “Não senhor, me desculpe.” “A senhora quer saber das minhas horas?” “Sim, por favor.” Já em tom de brincadeira ele começou a falar. “Saí de casa às 9h, sem rumo e sem compromisso, para lhe encontrar nessa breve viagem até o centro da cidade às 9h e 25min. Farei algumas visitas sem importância entre 10 e 11 horas. Depois, devo retornar às 11 horas e 30 minutos e adoraria lhe encontrar na viagem de volta.”


Com esse descaramento todo, levantei os olhos e encontrei os seus a zombarem de mim. Não tive como ficar ofendida; o senhor idoso brincou com a minha aflição e, do seu jeito divertido, mostrou, sem intenção, minha própria contradição. A superatleta da vida cotidiana, correndo atrás de cada minuto para ganhar sabe lá o quê, teve o desplante de sugerir que ele agisse desapegado às horas e que dispusesse do tempo de forma lúdica a fim de desfrutar de maior felicidade. Como pode?



Um comentário:

  1. Sensacional!!!! Muitas vezes nos contradizemos e nos conflitamos sem nos darmos conta, em meio às nossas necessidades e às nossas vontades. Importante estarmos abertos para que o outro possa nos mostrar essa dicotomia entre o querer e o fazer.

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