quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Partidas


O telefone tocou. Parou. Ressoou pelo dia todo em intervalos até gastar o timbre. Depois silenciou de vez.

Deitada na cama estava; deitada na cama ficou. O corpo dormente não impedia a ardência dilacerante da alma. Os olhos abertos, cegos, apontavam para o teto. Porém, a atenção voltava-se ao passado recente. Ela fora abandonada num simples virar de costas. “Como um saco de batatas estragadas”, pensava.

O dia dormiu, mas ela teve insônia. A noite se foi, mas ela continuava ali parada, completamente destruída. Dois dias, e a folga acabou. Tinha que trabalhar novamente, precisava cuidar dos sofrimentos dos outros, infinidades de problemas diferentes e, eventualmente, com facetas parecidas com a dos seus. Desconjuntada, se levantou e saiu. Com olheiras penduradas no meio do rosto, atônita, ia confabulando consigo mesma: “Como posso ajudar alguém neste estado? Estou em frangalhos!” E passo a passo prosseguia em seu andar profissional.

Chegou ao hospital, e neste universo esqueceu temporariamente da sua mazela. Vez por outra, uma lágrima perdida escorregava, mas como naquele ambiente jorravam tantas lágrimas, e sobre tantos rostos alquebrados, que as suas nem foram percebidas. Ouviu uma voz amiga sussurrar: “Estava tão preocupada! Tu não atendias ao telefone. Como estás?” A dor revelou-se num único e breve olhar. As urgências do trabalho não permitiam muita conversa, nem ela queria se deter a dizer mais do que já estava explícito.

Ao final do dia e das correrias, jogou-se numa cadeira ao canto do posto de enfermagem, bem atrás da coluna. Tirou do bolso um bilhete e o leu pela milésima vez: “Lamento, sei que não mereces, mas não soube fazer diferente. O rumo da minha vida mudou, estou indo embora. Desculpa.” Foi essa a mensagem inesperada, fria, rabiscada covardemente num pedaço de papel qualquer. Toda a explicação e a despedida. Uma década de relacionamento descartada sem mais nem menos. Ele partiu para outras aventuras sem deixar vestígio. Respirou fundo e, no ímpeto, amassou o fragmento de papel. Ainda vacilante, jogou-o ao lixo.

Do outro bolso do jaleco retirou um envelope rosado recebido quase ao final do expediente. De dentro dele tirou um papel de carta, com frases escritas a lápis sobre tênues linhas impressas. Letras e borboletas haviam sido desenhadas e coloridas com esmero.  Admirou o trabalho infantil, leu com encantamento a pureza de sentimentos transpostos à carta. Eram mimos e afagos doados por um pequeno anjo preparando-se para a partida aos céus. Doces palavras de amor e otimismo, e de imensa gratidão pelas atenções recebidas. Emocionou-se. O choro subiu à garganta e explodiu convulsivamente. Foi inevitável. Beijou a carta com paixão. Apertou-a junto ao coração e chorou a tempo perdido. Chorou quase a se desidratar.

Recompôs-se tão logo conseguiu. E antes de ir embora, ainda passou no quarto da criança para uma última espiada. Ela dormia presa ao soro e à ventilação mecânica, sem os cabelos, e bem abraçadinha ao seu urso caramelo com laço na cabeça. “Que não seja a despedida”, pensou. Um soluço soltou-se como um gemido. Murmurou: “Obrigada, anjinho. Obrigada pela lição. Preciso valorar o que realmente tem valor. Amanhã eu volto para te ver, para aprender contigo, para te retribuir... Obrigada, anjinho!” E fugiu apressada para não desatar novamente no choro iminente.



Em casa, o telefone desconectado, sem vibrações nem ruídos, livre das ansiedades dos amigos, permitiu o sono merecido. E ela dormiu e sonhou e sorriu inconscientemente. Pela manhã acordou calma, pálida, com os olhos desfigurados, mas pingando lágrimas límpidas de um sentimento que, de mansinho, se construía novo. 

domingo, 19 de outubro de 2014

Estátua


Na infância eu adorava brincar de estátua com meus irmãos e amiguinhos. A diversão decorria do esforço em conseguir ser a estátua sobrevivente. Caminhávamos e dançávamos enquanto aguardávamos o líder ordenar: “estátua”. Aí tínhamos que nos manter na exata posição em que nos encontrávamos, e pelo tempo que o líder determinasse. Enquanto aguardávamos o novo comando para nos liberar do congelamento, o líder provocava situações de riso com piadas e caretas. Quem se mexia era eliminado e ia saindo do jogo até sobrar o último, o vencedor que, assim, assumiria o posto de comando na sequência da brincadeira.

No jogo era bom ser estátua, pois ficar inerte poderia nos levar à vitória. Além disso, a brincadeira permitia que a gente estimulasse habilidades físicas como o equilíbrio, e mentais como a atenção. E o tempo passava divertido, sem nem ser notado.

Porém hoje, lamentavelmente, sem estar inserida neste jogo gostoso, pareço ser a estátua remanescente. Estou parada e inerte, sem qualquer perspectiva de vitória nem de desenvolvimento de habilidades. E, pior que tudo, desesperada vendo o tempo passar arrastado e pesado, mesmo que vazio. Sinto-me petrificada, aguardando que meu líder interno me absolva desta paralisia e me autorize à soltura de movimentos na busca de alegrias e realizações.

Entre uma e outra voz de comando desta liderança, déspota, as obrigações são as únicas possíveis de serem executadas; exclusivamente elas, e pela pura necessidade de sobrevivência. O jogo acabou. A graça e o sonho acabaram... 

Não, não, o sonho não acabou. Eu acredito na vida eterna dos desejos e fantasias. Meus sonhos simplesmente estão presos em estátua, aguardando que o tal tirano residente em mim, em algum momento e por qualquer motivo, ainda se sensibilize e liberte o lúdico, a leveza, o devaneio, e a minha escrita. Que estimule o dançar, o correr, e o voar da imaginação e das ações.

      Consinto na estátua da brincadeira, não a do aprisionamento. Quero a estátua livre para me divertir nos jogos da vida adulta. Sim, eu sei, preciso de coragem para transgredir as ordens opacas e mal humoradas que me põem na inação. Sim, eu quero - e sei que vou - descongelar da rigidez para me derreter em emoções. Sim, urge que eu faça alguma coisa. E terá de ser agora. 


(Fazia um mês que eu não escrevia!)