O telefone tocou. Parou. Ressoou pelo dia
todo em intervalos até gastar o timbre. Depois silenciou de vez.
Deitada na cama estava; deitada na cama
ficou. O corpo dormente não impedia a ardência dilacerante da alma. Os olhos
abertos, cegos, apontavam para o teto. Porém, a atenção voltava-se ao passado
recente. Ela fora abandonada num simples virar de costas. “Como um saco de
batatas estragadas”, pensava.
O dia dormiu, mas ela teve insônia. A noite
se foi, mas ela continuava ali parada, completamente destruída. Dois dias, e a
folga acabou. Tinha que trabalhar novamente, precisava cuidar dos sofrimentos
dos outros, infinidades de problemas diferentes e, eventualmente, com facetas parecidas
com a dos seus. Desconjuntada, se levantou e saiu. Com olheiras penduradas no
meio do rosto, atônita, ia confabulando consigo mesma: “Como posso ajudar
alguém neste estado? Estou em frangalhos!” E passo a passo prosseguia em seu
andar profissional.
Chegou ao hospital, e neste universo esqueceu
temporariamente da sua mazela. Vez por outra, uma lágrima perdida escorregava,
mas como naquele ambiente jorravam tantas lágrimas, e sobre tantos rostos
alquebrados, que as suas nem foram percebidas. Ouviu uma voz amiga sussurrar: “Estava
tão preocupada! Tu não atendias ao telefone. Como estás?” A dor revelou-se num
único e breve olhar. As urgências do trabalho não permitiam muita conversa, nem
ela queria se deter a dizer mais do que já estava explícito.
Ao final do dia e das correrias, jogou-se numa
cadeira ao canto do posto de enfermagem, bem atrás da coluna. Tirou do bolso um
bilhete e o leu pela milésima vez: “Lamento, sei que não mereces, mas não soube
fazer diferente. O rumo da minha vida mudou, estou indo embora. Desculpa.” Foi
essa a mensagem inesperada, fria, rabiscada covardemente num pedaço de papel
qualquer. Toda a explicação e a despedida. Uma década de relacionamento descartada
sem mais nem menos. Ele partiu para outras aventuras sem deixar vestígio. Respirou
fundo e, no ímpeto, amassou o fragmento de papel. Ainda vacilante, jogou-o ao lixo.
Do outro bolso do jaleco retirou um envelope
rosado recebido quase ao final do expediente. De dentro dele tirou um papel de
carta, com frases escritas a lápis sobre tênues linhas impressas. Letras e
borboletas haviam sido desenhadas e coloridas com esmero. Admirou o trabalho infantil, leu com
encantamento a pureza de sentimentos transpostos à carta. Eram mimos e afagos doados
por um pequeno anjo preparando-se para a partida aos céus. Doces palavras de
amor e otimismo, e de imensa gratidão pelas atenções recebidas. Emocionou-se. O
choro subiu à garganta e explodiu convulsivamente. Foi inevitável. Beijou a
carta com paixão. Apertou-a junto ao coração e chorou a tempo perdido. Chorou quase
a se desidratar.
Recompôs-se tão logo conseguiu. E antes de ir
embora, ainda passou no quarto da criança para uma última espiada. Ela dormia
presa ao soro e à ventilação mecânica, sem os cabelos, e bem abraçadinha ao seu
urso caramelo com laço na cabeça. “Que não seja a despedida”, pensou. Um soluço
soltou-se como um gemido. Murmurou: “Obrigada, anjinho. Obrigada pela lição.
Preciso valorar o que realmente tem valor. Amanhã eu volto para te ver, para
aprender contigo, para te retribuir... Obrigada, anjinho!” E fugiu apressada
para não desatar novamente no choro iminente.
Em casa, o telefone desconectado, sem
vibrações nem ruídos, livre das ansiedades dos amigos, permitiu o sono
merecido. E ela dormiu e sonhou e sorriu inconscientemente. Pela manhã acordou calma,
pálida, com os olhos desfigurados, mas pingando lágrimas límpidas de um
sentimento que, de mansinho, se construía novo.