Jogada no sofá de pernas para o ar e completamente relaxada, sem
compromisso reivindicando atenção, sem viva alma a preencher os vazios da casa,
e sem qualquer esforço da vontade consciente, caí na rede dos meus pensamentos poéticos.
E lá estavam eles fazendo uma suave retrospectiva do ano que findava. Pensamentos
faceiros passeando por acontecimentos vividos, singelamente enfeitados por véus
de musselina coloridos em tons pastéis. O sorriso já ia solto invadindo os lábios e as emoções. De súbito dei um salto, tropecei em meus próprios pés, e
caí sentada e desajeitada no chão em frente ao sofá.
"Espera", disse eu a mim mesma. "Cadê os outros? Afinal, o ano não tem
que ter 365 dias? Está me faltando um bom punhado de dias neste ano aí, eu não
vivi tudo isso, não senhor!!! Tem cilada nisso, ah, tem mesmo." E esse pensamento aflito se ocupou rápido e
plenamente de mim. Instintivamente soltei um gemido, e depois, sem
dar por mim, gritei desconsoladamente:
- Socorro, eu fui roubada, fui roubada embaixo do meu nariz. Não
pode ser, perdi pelo menos um quarto de tudo! Eu fui roubada, eu fui roubada...
E ali mesmo no chão, abraçada em minhas pernas, com a testa levemente
apoiada nos joelhos, desatei em choro convulsivo.
Em minutos a campainha do apartamento tocou. Paralisei, pois aquela
não era uma boa hora, eu não queria atender ninguém nem receber visita, nem que
fosse quem fosse. Mas a campainha voltou tocar com insistência. "Diabos, a
gente não consegue mais sofrer em paz?" Sequei as lágrimas, arrumei a cara e fui
à porta abrindo inicialmente uma fresta, e logo a porta toda. Para meu espanto vizinhos se espremiam e falavam ao mesmo tempo diante de mim:
- Estás bem? Não te machucaram?
- Viste a cara do bandido? Por onde ele entrou?
- Foi agora? Que perigo! A gente nem viu nada.
- Fica calma que nós vamos te acompanhar até a delegacia para o
registro da queixa, isso não vai ficar assim. O maldito do ladrão há de pagar por
isso.
- Que susto minha querida, precisas de alguma ajuda? Um calmante,
talvez?
Atônita, com os olhos molhados e arregalados, olhando os bons
corações solidários, e intrometidos, eu fiquei na iminência de simplesmente fechar
a porta e voltar ao momento de introspecção com minhas subjetividades. Porém, como
faria? A boa educação me fez secar a última lágrima que escorreu desgarrada, e amenizar
o mal entendido.
- Por favor, desculpem-me pela confusão, eu falei alto, não é? Mas foi
sem querer, não consegui conter a emoção. Na verdade, não foi bem um ladrão
quem me roubou, foi o destino. Inclusive, pensando melhor, acho que não foi um
roubo, eu fui lesada por uma trapaça da vida. Lamento o sobressalto que criei.
Estou ainda um pouco atordoada, mas fiquem tranquilos, já estou melhor.
Enquanto eu explicava o inexplicável, sutilmente fui encostando a
porta até fechá-la, separando novamente as minhas apreensões das preocupações deles.
Entre olhares, os vizinhos pareciam não entender nem se convencer da minha
conversa, no entanto, devagarinho foram se dispersando.
Pé ante pé eu voltei para perto do sofá, me agachei no chão
abraçando as pernas como antes, e retornei a chorar, sentidamente, o sumiço dos
oitenta e poucos dias do meu ano que findava. Porém, dessa vez, soluçando e murmurando baixinho para não incomodar mais ninguém:
- Onde foram parar meus dias faltantes? Onde?