quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Filhos idosos, pais muito idosos

 

As aventuras e desventuras dos adultos de meia idade e idosos acima dos 60 anos é tema de suma importância nos dias de hoje. São pessoas que frequentemente continuam dando suporte emocional ou financeiro aos filhos adultos, colaboram no cuidado dos netos, mantêm-se atentos às demandas do parceiro afetivo, administram a profissão, a casa, e minimamente os compromissos (formais ou informais) com o condomínio, vizinhos, clubes filantrópicos etc. E, para além desses compromissos, sem abandonar-se e/ou maltratar-se pela sobrecarga, ainda necessitam assumir a nova responsabilidade de cuidar dos pais muito idosos, geralmente já com restrições na saúde e exigindo cuidados especiais. Pais muito idosos que não conseguem mais gerir a casa com suas demandas, nem seus recursos financeiros e o próprio dinheiro, tão pouco os cuidados básicos com a saúde.

 

Uma geração de pessoas à beira da velhice destinada a viver super-ações. São adultos super exigidos, super dinâmicos, super estressados, super promissores, super incompreensíveis, super amorosos, super e super tantas outras coisas.

 

Observação: Eu estou nesse grupo de jovens idosos em “SuperAções”, apenas não tenho netos, o que é uma lástima, pois eu adoraria...

 

Sobre as desventuras dessa nossa geração, não é preciso se alongar, é fácil imaginar. O cansaço domina, o desânimo se apresenta intermitente, a sobrecarga por vezes faz a pessoa querer desistir de tudo. E o pior, volta e meia surge um sentimento crescente de abandono ou solidão em meio a tudo.

 

Mas todos os infortúnios podem tornar-se pequenos diante das possíveis e gratificantes surpresas ao se cuidar dos pais muito idosos. Responsabilidade geradora de experiências inexplicáveis, inomináveis. Principalmente quando nós como filhos abrimos novas perspectivas para reestabelecer, requalificar e/ou reinventar as relações históricas que tivemos com os nossos pais, nem sempre muito afinadas ou felizes durante o tempo pregresso. O convívio no percurso da vida costuma produzir incompreensões, ressentimentos e impaciências dos filhos com seus progenitores (e vice e versa), críticas imperdoáveis aos seus defeitos e chatices, quando não a breves e escassas manifestações de carinho. Porém, de repente os pais não ordenam mais, eles choram ao pedir; os pais não são mais a fortaleza que representavam e se derretem mandando beijinhos assoprados; eles tornam-se tão doces e tão escancaradamente encantados com os filhos cuidadores que até dá remorso guardar qualquer gota de ressentimento. Muito presenciei dessas cenas no meu trabalho com as cuidadoras de idosos.

 

Mas não é fácil chegar nesse estágio, eu asseguro. Outro dia vi a postagem de uma idosa filha pedindo para não ser julgada por cuidar de má vontade da sua mãe hospitalizada. Certamente uma mãe que não correspondeu aos seus anseios ao longo da vida.

 

Se nós como filhos interpretarmos que nossos pais muito idosos são apenas fonte inesgotável de problemas e preocupações, ou que a existência alongada dos pais só aumenta pesarosamente as nossas demandas; se como filhos idosos não entendermos a magia de expandir os limites do papel de filho nessa vida de tantas voltas, ou não conseguirmos, de coração aberto, redescobrir nossos novos velhos pais; os ressentimentos se nutrirão com o peso que daremos à relação, e provavelmente tais sentimentos esvaziarão afetos dos mais relevantes, como de nossos filhos e netos.

 

Eu falo mergulhada na plenitude dessa experiência nos âmbitos profissional e, acima de tudo, pessoal. Sugiro aos filhos, idosos como eu, que atendam as obrigações com os seus pais muito idosos, e jamais percam a infinita capacidade de amar que trazemos em essência no âmago do nosso ser. Dessa forma não sofreremos com culpas internas nos amargurando, ou com culpas projetadas (em quem quer que seja) nos arranhando.

Hoje eu tenho com o meu pai a relação mais incrível, mais pura e honesta, e os momentos mais amorosos de nossas vidas, apesar de todas as limitações que o presente nos impõe.

 

E as imperfeições da nossa história... Evaporaram!


terça-feira, 4 de agosto de 2020

PASSEIO NA PRAIA

 

Praia deserta, os murmúrios do mar

Gritam, preenchem todos os espaços.

No alto o sol ilumina, propaga-se,

Mas não aquece, a brisa é fria.

Eu caminho nas areias úmidas, choveu à noite,

O mar está gelado. A natureza é excessiva.

Mas a beleza vem com ressalvas,

Há perversão na alienação destrutiva do ser humano.

Latas, embalagens, garrafas pet, tocos de cigarro,

E demais lixos mancham as areias brancas.

Despejos pluviais escorrem sucessivos

Encharcam e carregam as areias da praia

Que sangram pelo descaso...

Tiro os óculos e perco a nitidez da imagem

Ela não se perde de mim, se mantém

Beleza brilhante, reluzente, apenas capturada com efeito,

Ou defeito.  A praia é exuberante a todos os sentidos,

Comove mesmo se, apenas, eu a respirar.

Apesar do meu desconsolo com a negligência humana

Nada me faz mais feliz do que estar aqui, nessa imensidão

Sedutora. O mar brinca em movimentos espumantes

Provoca, busca tocar os meus pés, mas antes de alcançá-los

Recolhe-se discreto, como se por timidez.

 

 


segunda-feira, 3 de agosto de 2020

DEVANEIOS NOTURNOS


Pensamentos perturbadores povoam e se agitam na mente,

Enquanto o corpo mantém-se inerte e jogado sobre os lençóis frios.

A noite avançando na madrugada expõe um silêncio,

O silencio da cidade em coma profundo.

Estou perdida em mim, ou de mim?

Pálpebras, antes cerradas, agora completamente erguidas.

Olhos secos, ingurgitados, não de choro, mas de loucura.

Verdades e mentiras se entrelaçam não fazendo sentido

No jogo de luzes e sombras pervertem-se as noções de certo e errado

Verdades escapam, iludem. Desintegram-se.

As verdades são etéreas, são múltiplas, contraditórias...

Verdades falsas. Sobram as mentiras que acredito

Mentiras que explicam e se consolidam, que nos expõem,

Mentiras que me traduzem. Verdadeiramente?


sábado, 1 de agosto de 2020

Estrada paraíso


De uns tempos para cá, por questões pessoais mescladas com reminiscências profissionais, vejo-me exigida a passar de carro com frequência pela mesma estrada, indo e vindo sozinha.

E só, me delicio como na primeira vez.  Sinto indescritível fascínio ao ver as ondulações da serra no horizonte, o espelhar do vasto lago, o tom verde escuro das árvores à distância contrastando com o verde vivo da natureza próxima, e a via discretamente sinuosa. Além das características hipoteticamente estáticas, sutilezas vão dando personalidade à paisagem conforme a hora do dia, as condições do tempo e a estação do ano.  

O carro desliza com a velocidade reduzida pelo meu encantamento. Vou fotografando mentalmente cada seguimento do percurso para não perder nenhum detalhe, para não correr o risco de desperdiçar a mínima sensação de prazer. Toda vez é assim, não importam os motivos nem a pressa que me justificam, naquele momento eu saio do meu mundo exigente e me abandono ao êxtase dos escolhidos. Sinto a magia de ser parte, e de ter tudo.

Pelo trajeto elejo recantos nos quais eu poderia viver eternamente. Aproprio-me destes pequenos universos em trânsito sonhando moradias e estilos de vida, inventando destinos aos meus personagens mais íntimos, secretos e exóticos. E como fundo musical aos improvisados roteiros, costumo cantarolar sons em arranjos leves e desconexos que se compõe na alma. São minutos de pura poesia que me revigoram após infortúnios que tive em horas ou dias pregressos, ou que me fortalecem aos duros enfrentamentos que virão nas horas ou dias futuros.

Os compromissos me levam à estrada. O caminho se faz paraíso.

Meu epílogo: Do paraíso os meus diversos “eus” trazem noticias tuas. E sozinha, na estrada paraíso, sinto a tua presença irradiando o meu presente. E me inspirando.


quinta-feira, 23 de julho de 2020

CARTA A UM AMOR



Xangri-lá, um dia qualquer de julho.


Há meses sobrevivo sem notícias tuas.

Ontem decidi escrever inspirada por uma poetisa que escrevia cartas. Eu não sou poeta, minhas pretensões são modestas, mas consigo. Escrevo uma carta para ti, amor que foi, e se foi; amor que sempre será, e estará em mim. Foi ontem que eu decidi escrever essa carta para ti. Será que ela te encontrará? Que tu a lerás? Não me iludo quanto a tua improvável resposta.

Sempre soube que o tempo, por mais longo, se faria nostalgicamente breve. Assim, naquela noite de agitação inconsciente, dentro deste tempo que se esvaía e frente à derrocada dos teus medos, dúvidas e ambivalências, eu sussurrei repetidas vezes ao teu ouvido: “Vai. Segue o teu caminho. Fica bem!” Lembras? Quando acordei no meio da madrugada, de sobressalto, eu soube que havias partido. Ainda pude sentir o calor do teu corpo, a sensação da tua presença, mas eu sabia, havias partido. E não chorei, eu sabia. Tu havias me escutado.

 Falaste em partir tantas vezes, mas as crises passavam, tu te acomodavas e ficavas. Eu me preocupava contigo, ficava triste pelas tuas tristezas, mas tu estavas sempre tão profundamente presente e atuante em tudo o que te circundava, que eu nunca antes pensei realmente em despedidas.

Agora estou sozinha, fugida para me encontrar contigo. O tempo por aqui tem se excedido em chuvas. Aguaceiro que transborda rios, que alaga cidades e invade casas.  Meus olhos estão encharcados, cansados, tristes. Saudosos. Por aqui tem pandemia, gafanhotos, inundações, e um vazio inominável de ti.

Engraçado, eu preferia a intimidade da família e da casa, e tu gostavas da sociabilidade dos grupos em reuniões e festas. Mas tu partiste só e me deixaste em meio ao acolhimento de grupos diversos. Quem diria. Lembro com gratidão da nossa parceria, das confidências, das nossas diferenças tão harmoniosamente administradas.

Por aqui sigo com os projetos que me apoiavas, sigo com a vida cheia de compromissos que te queixavas, sigo simplesmente, sem muito lembrar. Mas há momentos que se constroem inesperados, em que o soluço pula da garganta e o choro se derrama convulsivo. Nessas horas sinto uma imensa falta de ti, como se uma parte de mim estivesse extirpada. O ar se escassa. As lágrimas jorram e se gastam, secam, mas nada além da exaustão impede que o choro se acalme. Sinto falta, sinto tristeza, sinto que a vida continua apesar da tua ausência. Então eu prossigo com os projetos que me apoiavas, prossigo com a vida cheia de obrigações que te queixavas, e prossigo na vida, simplesmente como deve ser.

Com certa frequência pessoas falam em ti, mas eu não gosto de ouvi-las. Não quero que a impressão delas corra o risco de alterar qualquer detalhe das minhas lembranças. Quero te guardar conforme as minhas vivências, te enaltecer nas minhas fantasias, quero esquecer todos os teus defeitos. Para mim tu sempre estarás na tua melhor versão. Adoro ver teus olhos verdes e teu sorriso largo nas imagens gravadas na memória.

Sei que tu não voltarás para mim, assim como eu não irei atrás de ti. Nesse momento histórico trilhamos por rumos diferentes, mesmo assim, incomunicáveis fisicamente, percebe como eu te amo, eu te amo tanto... E te amarei até meu último suspiro, tenha certeza disso. E a partir do amor que não se esgota, amarei novos amores, construirei novas relações, sofrerei decepções, enfrentarei problemas, sorrirei de encantamento. Tudo será igual, e diferente. Tenho bagagem, eu aprendi contigo.

Amar será sempre o meu consolo às despedidas. Eu continuarei te amando, me amando, amando os que estão e os que virão. Fica bem, grande amor da minha vida, segue o teu caminho sem olhar para trás, eu estou bem... E ficarei melhor. Um pouco melhor a cada novo dia que vier.

Posso te escrever mais uma vez?