segunda-feira, 24 de março de 2014

Iedinha (ensaio)



O nome Ieda Maria foi  homenagem à “Miss Universo”. Quando menina era um encanto: rosada linda e querida, e muito inteligente. Tinha impertinências de criança, mas apenas pequenas bobagens perto da graciosidade de sua presença. Ieda Maria, ou Iedinha como todos a chamavam, estudou em um grupo escolar estadual, levando o uniforme de guarda-pó, branco como a neve, impecável, cheiroso e engomado do início da manhã até o final. Proeza que só Iedinha conseguia: brincar no pátio com os coleguinhas sem se desalinhar. Em casa gostava de  bonecas, ler e pular corda. Apreciava as plantas e os animais, mas tinha uma intolerância com as pessoas velhas que a fazia ser esquiva diante delas, e infinitas vezes, mal educada.

Na adolescência Iedinha não apresentou rebeldias, conservando o gosto pelos estudos e asseio, porém o seu comportamento frente à velhice e aos velhos ficou exacerbado a ponto de beirar a maldade. Odiava os velhos, expressava repugnância diante deles, ofendia-os na proximidade enaltecendo suas características normais como se fossem doenças graves e contagiosas. Nunca permitiu aos avós chegarem perto dela para um abraço ou beijo. O respeito para com eles resumia-se ao imposto silêncio da língua ferina.

Bela como a Miss, quando adulta trajava-se com requinte e elegância.  Não se expunha ao sol para evitar prováveis manchas e indesejadas rugas, exercitava-se em ritmo alucinante para evitar qualquer tipo de gordura - exibia os músculos em perfeitas curvas. Formada em Administração logo estava trabalhando e merecendo o bom salário que recebia. Os pretendentes choviam aos seus pés, e Iedinha foi criteriosa. Namorou e casou com um bom rapaz.

Casada há anos, Iedinha refutava a ideia de gravidez para não prejudicar a perfeição do corpo. Porém amava o marido, e por ele foi convencida a ter o filho que também desejava, quase em pânico, atormentada pelas possíveis estrias e gorduras acumuláveis. Após o parto entrou em depressão, fugindo ao espelho e evitando os olhos sobre si. Nesta época iniciou um sutil processo de rejeição aos pais e sogros, provavelmente pelo quanto eles já sinalizavam o início da nova fase: estavam a ficar velhos. Magoados, afastaram-se na mesma lentidão do processo de descarte. Quiseram crer que os motivos de Iedinha passassem pelo  orgulho da recente maternidade ou por fortes sentimentos de propriedade sobre o  filho, e aspiravam que o tempo tratasse de amadurecê-la e arrumar o descompasso. Mas quando a mãe de Iedinha percebeu que era sua velhice iminente que transtornava a filha, ficou para morrer de tristeza e culpa, atribuiu a si parte do pecado: não fora capaz de bem educa-la, e, ainda por cima, estava inadvertidamente ficando gasta. A mãe de Ieda Maria adoeceu de desgosto, desmazelada envelheceu num piscar de olhos, e com ressentimentos percorrendo o sangue e contaminando o ser por completo, sucumbiu à morte. Pobre mulher, nem cinquenta anos tinha.

O pai de Iedinha, arrasado sem  o carinho  da esposa falecida e diante do desprezo da filha, vendeu tudo o que tinha, doou em vida, e perdeu-se mundo afora. Nunca mais alguém da velha vida soube dele - se morreu ou investiu em nova vida. Os sogros de Iedinha mantiveram bom contato com o filho e o neto,  momentos privados e sigilosos ao longo do tempo. Cada vez mais só e amargurada, principalmente com a previsível perda do viço, Ieda Maria mergulhou em sintomas de depressão dissimulados.

Com o intuito de minimizar suas apreensões, imediatamente após o parto, fez cirurgia plástica para colocar silicone nos seios e repor no lugar a barriga flácida pela gravidez. Logo, logo já estava pronta para submeter-se a outros procedimentos e espantar qualquer sinal dos anos sobre si. Os médicos resistiram, mas fracassaram diante dos atormentados apelos de Iedinha, e dessa forma ela foi engatando as cirurgias em sequência, na permanente busca da manutenção do corpo jovem. Fez “peeling” no rosto para suavizar as marcas de expressão, refez a barriga, retalhou e esticou a pele desde as mãos até os pés, infiltrou Botox e fez preenchimento na testa, em torno da boca e por todos os cantos possíveis. Colocou silicone, inclusive, nas nádegas e coxas. Por exigência dos médicos, iniciou psicoterapia quase trezentas vezes, abandonando uma a uma, sempre com argumentos inteligentes atrelados a todo e qualquer motivo existente no mundo, e, quantas vezes, por causa dos sinais de velhice dos terapeutas.

Quando nenhum médico mais quis recortá-la, Iedinha fez peregrinação em outras cidades, até em outros países, disposta pagar bem a quem aceitasse lhe fazer mais uma plástica de correção à velhice. Sempre bem vestida, sempre muito vaidosa, sempre e cada vez mais infeliz e só, exalava uma espécie de arrogância em sua obsessão pela juventude. Iedinha, perdida em seu desequilíbrio e incompreendida em seus sentimentos, passou a ser menos quista, embora continuasse produtiva inteligente e boa, dentro das suas limitações. Aos olhos dos outros, suas virtudes foram se esvaindo, gota a gota, até não restar qualquer resquício para admiração.

Apesar dos pesares, em relação ao marido e filho, Ieda Maria conseguia amar e  ser amada. Eram amores perdidos em concessões às suas  maluquices. Mesmo assim,  chegou o dia em que Iedinha percebeu, com  muito desconforto, umas  e outras rugas em volta dos olhos do marido. Com obstinação empreendeu todos os esforços para nega-las , pois não conseguiria viver sem o querido e estimado homem.

Puxada, repuxada, desfigurada, transmutada ante as urgências de fugir às marcas do tempo, Iedinha foi perdendo a percepção de sua imagem real, e, de um determinado momento em diante, frente ao espelho, passou a enxergar apenas a imagem idealizada de si. Porém, foi diante da visita de um colega do marido que Iedinha ficou horrorizada com o destino por ela construído.

O amigo e sua esposa chegaram com a filha, criança de uns sete anos, para festejar o aniversário do marido de Iedinha. Os donos da casa ofereceram lápis de cor, canetinhas coloridas e um monte de papel para a criança se distrair. Entre os muitos desenhos de árvores, flores, casinha e animais, a menina criou um desenho com pessoas.  Lá estavam seus pais e ela, o aniversariante e seu filho, e uma figura muito esquisita, um animal com uma cara de bode, parte do corpo de touro, o traseiro de zebra, patas de ave e cachorro, e outros detalhes indescritíveis. Ingenuamente o rapazote, filho de Iedinha, pediu que a criança explicasse o que era aquele animal estranho, ao qual a menina prontamente respondeu: é a tua mãe!

O mal estar foi geral, mas todos se incumbiram de trocar o foco das atenções e desvalorizar a fala da pequena. Depois, porém, Iedinha teve uma crise de nervos descomunal. “Eu sou um monstro, olha só em que foi que me transformei, num monstro.” “Só a pureza de uma criança para tamanha sinceridade.” Repetia incansavel enquanto chorava copiosamente. Quanto mais se derretia em lágrimas mais se encolhia a chegar à posição fetal. Gemeu, chorou, sofreu até o âmago do seu ser. O marido a abraçava com carinho e reafirmava seu amor por ela. O filho acariciava os cabelos da mãe, trazia água para ela beber e se acalmar, e com piedade implorava para que a mãe reagisse. Por horas a fio, Iedinha se levantava, gritava, e se jogava ao chão, se lamentava, praguejava, e voltava a se encolher, não conseguindo mais  dormir nem comer. Ao cabo de dois dias, foi inevitável, pai e filho internaram a mãe para tratamento em clínica psiquiátrica.

 
 

 

domingo, 9 de março de 2014

Adeus


Diante da despedida final, engolindo as lágrimas rolando garganta adentro, a memória chora pelos sorrisos não trocados, pelas conversas silenciadas antes da hora, pelos encontros que não aconteceram. A saudade ao não compartilhado avulta-se sobre as lembranças vividas. Por quê? Por que escapei à presença nesta história que hoje se cumpriu com a tua partida? Por que, mesmo, não me permiti desfrutar mais da tua companhia, oferecendo-me mais como companhia, em alguns dos infinitos momentos dos nossos dias?

Sei que o bem querer justificava manter e estreitar os laços, então, o que determinou à quase extinção do vínculo? Não foi premeditado, mas um dia me rebelei ao instituído e segui por caminhos adversos. Eu mudei e me distanciei. Meu olhar estava posto longe, em outros horizontes, e eu não soube preservar as conquistas daquele presente. E eu fui, e me deixaram ir, embora.


Passaram-se os meses, e havia mágoa no teu silêncio. Passaram-se os anos, e no recato dos teus gestos concedeste, a mim, o teu perdão. Passaram-se muitos e muitos anos, e numa das provocações da vida me abraçaste com a quentura do teu afeto. Nem tudo se perdera, porém o tornado da vida já girava de tal forma que não consegui liberar-me e ir ao encontro da tua meiga doçura.

 
Hoje ao me despedir de ti - entre sombras e verdes, sob um sol luminoso e suave, refrescada por uma fina garoa de verão – guardei com carinho tua melhor imagem: o bonito sorriso de finos lábios a irradiar alegria ao claro olhar por detrás das lentes; um quê de criança transbordante trazido no teu corpo de adulto ao longo dos anos. A tua candura ficará no meu ser como um presente desta nossa longa e breve convivência. Sentirei saudades de tudo o que não vivemos. Adeus!