O nome
Ieda Maria foi homenagem à “Miss Universo”. Quando menina era um encanto: rosada linda e querida, e muito inteligente. Tinha impertinências
de criança, mas apenas pequenas bobagens perto da graciosidade
de sua presença. Ieda Maria, ou Iedinha como todos a chamavam, estudou em um grupo escolar estadual,
levando o uniforme de guarda-pó, branco como a neve, impecável, cheiroso e
engomado do início da manhã até o final. Proeza que só Iedinha conseguia: brincar no pátio com os coleguinhas sem se desalinhar. Em casa gostava de bonecas, ler e pular corda. Apreciava as plantas e os animais, mas tinha
uma intolerância com as pessoas velhas que a fazia ser esquiva diante delas, e
infinitas vezes, mal educada.
Na
adolescência Iedinha não apresentou rebeldias, conservando o gosto
pelos estudos e asseio, porém o seu comportamento frente à velhice e aos velhos
ficou exacerbado a ponto de beirar a maldade. Odiava os velhos, expressava
repugnância diante deles, ofendia-os na proximidade enaltecendo suas
características normais como se fossem doenças graves e contagiosas. Nunca
permitiu aos avós chegarem perto dela para um abraço ou beijo. O respeito para com
eles resumia-se ao imposto silêncio da língua ferina.
Bela como a Miss, quando adulta trajava-se com requinte e
elegância. Não se expunha ao sol
para evitar prováveis manchas e indesejadas rugas, exercitava-se em ritmo
alucinante para evitar qualquer tipo de gordura - exibia os músculos em
perfeitas curvas. Formada em Administração logo estava trabalhando e merecendo o
bom salário que recebia. Os pretendentes choviam aos seus pés, e Iedinha foi
criteriosa. Namorou e casou com um bom rapaz.
Casada
há anos, Iedinha refutava a ideia de gravidez para não prejudicar a perfeição
do corpo. Porém amava o marido, e por ele foi convencida a ter o filho que
também desejava, quase em pânico, atormentada pelas possíveis estrias e
gorduras acumuláveis. Após o parto entrou em depressão, fugindo ao espelho e
evitando os olhos sobre si. Nesta época iniciou um sutil processo de rejeição
aos pais e sogros, provavelmente pelo quanto eles já sinalizavam o início da nova
fase: estavam a ficar velhos. Magoados, afastaram-se na mesma lentidão do processo de
descarte. Quiseram crer que os motivos de Iedinha passassem
pelo orgulho da recente maternidade ou por fortes sentimentos de propriedade
sobre o filho, e aspiravam que o tempo tratasse de amadurecê-la e arrumar o descompasso. Mas quando a mãe de Iedinha percebeu que era sua
velhice iminente que transtornava a filha, ficou para morrer de tristeza e
culpa, atribuiu a si parte do pecado: não fora capaz de bem educa-la, e, ainda
por cima, estava inadvertidamente ficando gasta. A mãe de Ieda Maria adoeceu de
desgosto, desmazelada envelheceu num piscar de olhos, e com ressentimentos
percorrendo o sangue e contaminando o ser por completo,
sucumbiu à morte. Pobre mulher, nem cinquenta anos tinha.
O pai
de Iedinha, arrasado sem o carinho da esposa
falecida e diante do desprezo da filha, vendeu tudo o que
tinha, doou em vida, e perdeu-se mundo afora. Nunca mais alguém da velha vida
soube dele - se morreu ou investiu em nova vida. Os sogros de Iedinha mantiveram bom contato com o filho e o neto, momentos privados e
sigilosos ao longo do tempo. Cada vez mais só e
amargurada, principalmente com a previsível perda do viço, Ieda Maria mergulhou em
sintomas de depressão dissimulados.
Com o
intuito de minimizar suas apreensões, imediatamente após o parto, fez
cirurgia plástica para colocar silicone nos seios e repor no lugar a barriga
flácida pela gravidez. Logo, logo já estava pronta para submeter-se a outros
procedimentos e espantar qualquer sinal dos anos sobre si. Os médicos resistiram, mas fracassaram diante
dos atormentados apelos de Iedinha, e dessa forma ela foi engatando as cirurgias em
sequência, na permanente busca da manutenção do corpo jovem. Fez “peeling”
no rosto para suavizar as marcas de expressão, refez a barriga, retalhou e
esticou a pele desde as mãos até os pés, infiltrou Botox e fez preenchimento na
testa, em torno da boca e por todos os cantos possíveis. Colocou silicone,
inclusive, nas nádegas e coxas. Por exigência dos médicos, iniciou psicoterapia
quase trezentas vezes, abandonando uma a uma, sempre com
argumentos inteligentes atrelados a todo e qualquer motivo existente no mundo,
e, quantas vezes, por causa dos sinais de velhice dos terapeutas.
Quando
nenhum médico mais quis recortá-la, Iedinha fez peregrinação em outras
cidades, até em outros países, disposta pagar bem a quem aceitasse lhe
fazer mais uma plástica de correção à velhice. Sempre bem vestida, sempre muito
vaidosa, sempre e cada vez mais infeliz e só, exalava uma espécie de arrogância
em sua obsessão pela juventude. Iedinha, perdida em seu desequilíbrio e
incompreendida em seus sentimentos, passou a ser menos quista, embora continuasse produtiva inteligente e boa, dentro
das suas limitações. Aos olhos dos outros, suas virtudes foram
se esvaindo, gota a gota, até não restar qualquer resquício para admiração.
Apesar
dos pesares, em relação ao marido e filho, Ieda Maria conseguia amar e ser amada. Eram amores perdidos em concessões às suas maluquices. Mesmo assim, chegou o dia em que Iedinha percebeu, com muito desconforto, umas e outras rugas
em volta dos olhos do marido. Com obstinação empreendeu todos os esforços para nega-las , pois não conseguiria viver sem o querido e estimado homem.
Puxada,
repuxada, desfigurada, transmutada ante as urgências de fugir às marcas do
tempo, Iedinha foi perdendo a percepção de sua imagem real, e, de um
determinado momento em diante, frente ao espelho, passou a enxergar apenas a
imagem idealizada de si. Porém, foi diante da visita de um colega do marido que Iedinha ficou horrorizada com o destino por ela construído.
O
amigo e sua esposa chegaram com a filha, criança de uns sete anos, para
festejar o aniversário do marido de Iedinha. Os donos da casa ofereceram lápis de
cor, canetinhas coloridas e um monte de papel para a criança se distrair. Entre
os muitos desenhos de árvores, flores, casinha e animais, a menina criou um desenho com pessoas. Lá
estavam seus pais e ela, o aniversariante e seu filho, e uma figura muito
esquisita, um animal com uma cara de bode, parte
do corpo de touro, o traseiro de zebra, patas de ave e cachorro, e outros
detalhes indescritíveis. Ingenuamente o rapazote, filho de Iedinha, pediu que a criança
explicasse o que era aquele animal estranho, ao qual a menina prontamente
respondeu: é a tua mãe!
O mal
estar foi geral, mas todos se incumbiram de trocar
o foco das atenções e desvalorizar a fala da pequena. Depois, porém, Iedinha teve uma crise de nervos descomunal. “Eu sou um monstro, olha
só em que foi que me transformei, num monstro.” “Só a pureza de uma criança
para tamanha sinceridade.” Repetia incansavel enquanto chorava copiosamente.
Quanto mais se derretia em lágrimas mais se encolhia a chegar à posição fetal.
Gemeu, chorou, sofreu até o âmago do seu ser. O marido a abraçava com carinho e
reafirmava seu amor por ela. O filho acariciava os cabelos da mãe, trazia água
para ela beber e se acalmar, e com piedade implorava para que a mãe reagisse.
Por horas a fio, Iedinha se levantava, gritava, e se jogava ao chão, se lamentava, praguejava, e voltava a se
encolher, não conseguindo mais dormir nem comer. Ao cabo de dois dias, foi
inevitável, pai e filho internaram a mãe para tratamento em clínica psiquiátrica.