Vínhamos pensando fazer nossa primeira viagem à Europa - comemorar os 25 anos de casados. Queríamos nos organizar para conhecer a primavera do velho mundo, visitar poucos países, mas explorá-los bem, e nos ausentarmos de casa por duas ou três semanas no máximo. As filhas adolescentes ainda precisavam de olhos e supervisão, e os compromissos profissionais de proximidade. Vínhamos pensando!
Início de novembro do ano passado meu marido me surpreendeu com uma proposta. Recebeu oportunidade de ir à Itália, em dezembro, por conta de trabalho, e após conseguiria folga de duas semanas. Puxa! Perdi o ar, pulei de alegria no pescoço dele e sorrindo gritei: “Aventura, aí vamos nós”. Foi tudo muito rápido. Ele logo passou a estudar os roteiros, e eu os aspectos práticos para a nossa ausência. Acompanhei todo o planejamento do passeio, mas deixei ao encargo dele as decisões sobre nossas movimentações turísticas.
Início de dezembro: uma semana antes de mim o marido embarcou. No fechamento das minhas malas as gurias estavam animadas rodopiando e palpitando em volta, inserindo peças de roupas delas à minha bagagem, me instruindo sobre como me vestir, me portar, me comunicar, e sei lá o que mais, como se fossem superexperientes em viajar ao exterior. Todas nós transpirávamos felicidade, as filhas estavam tão ansiosas quanto eu, vibravam na mesma sintonia.
E assim, o grande dia chegou. Estava insegura, pois pela primeira vez viajaria cruzando o oceano, e só; fiquei de me encontrar com o marido em Milão, onde ele me aguardaria no aeroporto. A viagem de Porto Alegre a Milão foi tranquila, tudo dando certo em terra e no ar. Saí no verão e cheguei lá em pleno inverno. Por isso, antes de descer da aeronave me agasalhei. Vestia um jeans justinho, botas sobre as calças, moletom vinho, e sobre a roupa coloquei um casaco das filhas - elas fizeram questão e eu adorei. Era um jaquetão preto, de tecido impermeável e brilhoso, estufado pelo enchimento térmico. Tinha vários recortes e bolsos, além de um enorme bordado e um capuz pendurado às costas. Na borda do capuz havia pelos acinzentados em tons variados. Meus cabelos estavam soltos, recém-repicados e com uma franja apenas insinuada, mesmo assim compridos até o meio das costas. Eu estava me sentindo muito poderosa. Ah, e o detalhe final, antes de pisar em solo italiano retoquei meu batom, eu adoro batom, principalmente se for da cor rosa “cheguei”.
Tenho certeza, meu sorriso escancarado no rosto brilhava. Estava me sentindo radiante, jovem e deslumbrante. Na fila da imigração, já em posse da bagagem, não lembro bem se antes ou depois de passar pelos fiscais, solicitaram que eu acompanhasse em homem com crachá pendurado ao peito. Vacilei, não entendi bem, mas eu fui, tinha escolha?
Meio atrás, meio ao lado do italiano, entrei por um corredor que me levou a um grande saguão rodeado de pequenas saletas. O homem pediu que eu entrasse em uma delas, entrou junto e, deixando a porta aberta, solicitou que eu abrisse mala e bolsas. Enquanto eu obedecia, ele saiu e deixou na porta um enorme cão de guarda. Hum, as coisas começaram a ficar estranhas, estava no ar, algo errado acontecia. Não via mais ninguém pelos arredores, nem passageiros nem funcionários, não ouvia vozes. As paredes, o chão e a luz eram brancos. Nada de cor ou barulho. Tudo aparentemente calmo, calmo até demais. Passados longos minutos, o mesmo homem retornou. Pediu licença e remexeu em tudo o que havia na mala: olhou dentro dos sapatos, apalpou as laterais da mala, esvaziou os saquinhos de bijuterias e pinturas, abriu frascos de xampu, cremes e outros, e, inclusive, com as suas grandes mãos tocou até nas minhas calcinhas. Ai que ódio!
Enquanto investigava meus pertences ele me olhava e, por vezes, fazia perguntas. Quanto mais tensa eu ficava, menos eu entendia o homem. Por duas vezes mais ele me deixou na companhia do cão, com todos meus pertences abertos e devassados. A cada retorno o homem questionava sobre meu roteiro: para onde estava indo, onde me hospedaria, quanto tempo ficaria aqui, ali e acolá. Perguntas e mais perguntas. E eu, nervosa, não conseguia responder coisa alguma, só via os pensamentos sumirem, se dissolverem no ar. Dali para adiante não lembrava nem mais quem eu era. Bem da verdade, era meu marido que tinha as informações precisas sobre a nossa viagem, eu tinha apenas as gerais, mas que, naquele momento, até elas eu esqueci. Estava me sentindo a perfeita tonta. A bela virada na tola. Que inferno, repentinamente eu emburrei.
Ainda tentava me salvar dizendo que estava tensa e que meu marido, que me aguardava lá fora, saberia responder as dúvidas, pois ele sabia tudo de tudo. E o homem poderia chamá-lo para conferir. Assim, repeti por quantas vezes: “Não sei, não lembro, mas meu marido sabe”. Que tristeza!
Por último, o italiano pegou minha querida e inseparável máquina fotográfica Pentax, antiga e analógica, bem mais pesada do que qualquer digital, mas excepcional para fotos trabalhadas, e a virava de um lado para o outro e vice e versa. Punha a máquina na mão espalmada a conferir o peso da máquina e perguntava: “O que tem dentro da máquina?” E eu: “Como? Não entendi, dentro da máquina? Filme!?!”. E o homem repetia a ação e a mesma pergunta. Mais adiante falou: “Vou abrir. Posso?”. O que eu poderia responder? Se ele quisesse que o fizesse, perderia poucas fotos e o rolo do filme, nada mais. Se ele abrisse, quem sabe eu ganhasse a soltura. Mas o homem não abriu. Depois de muita encenação, largou a máquina, disse para eu arrumar a mala e me orientou como deveria chegar ao saguão principal do aeroporto. Virou as costas e foi embora. Eu segui as instruções e também fui embora.
Lá fora estava um marido apreensivo, mas muito feliz quando me viu!
Que ironia: tão linda, tão jovem, tão confortável no jaquetão das filhas, e mal sabendo que tudo me fazia ficar suspicaz. Até a cara de pateta. Nunca soube por que quase me prenderam ou extraditaram, mas acho que o jaquetão e eu, brilhando como só, contribuíram para a encrenca. Realmente acho.