segunda-feira, 29 de junho de 2015

O sonho pode esperar


Conhecer Londres havia sido um sonho acalentado com carinho por infindáveis anos; porém a realidade da vida cotidiana, sempre tão abarrotada de objetividades e urgências, tratou de empurrar cada vez mais à frente aquela almejada aspiração. E foi assim, só após a merecida aposentadoria, que Londres deixava de ser fantasia etérea para se materializar na sobriedade de suas cores, clima e arquitetura. Talita projetara ser londrina por seis meses. “Enfim!", pensava ela alegremente.
Passaporte pronto; matrícula efetivada no curso de inglês a dez minutos a pé de Greenwich; aulas particulares já agendadas para reforço ao aprendizado da língua; hospedagem garantida na residência estudantil; orientação para a chegada em Londres e a compra de um Oyster – cartão inteligente de transporte da cidade; mapas e roteiros com programação de passeios às margens do despoluído rio Tâmisa e aos pubs de Shoreditch; além de um bom guarda-chuva na mala, foram as principais iniciativas. No mais, tudo se transformava em detalhes. Detalhes que não acabavam, mas que a estimulava gerando recorrentes e prazerosos friozinhos na barriga.
Duas semanas antes da viagem, Talita promoveu uma pequena festa de despedida aos familiares e melhores amigos. Ficou emocionada com as manifestações de entusiasmo e apoio. Também quis se despedir da cidade, que nunca abandonou por mais de trinta dias. Escolheu pontos especiais para refrescar detalhes na memória. Porém, desde o primeiro dia do turismo local, a cada passo dado, a cada lugar visitado, a cada movimento seu para cá ou para lá, tinha a impressão de estar sendo observada. Era estranha e desconfortável a sensação, que parecia apenas ser uma sensação, visto que ao conferir, olhando aos lados e observando em torno, tudo parecia extraordinariamente normal. Era apenas sua sombra quem a seguia onde quer que ela fosse, mas realmente isso não parecia nada suspeito.
O mal estar, que se repetia na sequência dos dias, fez Talita comentar com os filhos. Eles acharam graça. Naturalmente ela estava nervosa, talvez um pouco insegura: “É nisso que dá uma velhinha se aventurar como adolescente”, zoava o filho caçula. Ela não tinha como discordar, era provável que andasse ansiosa, talvez um pouco tensa. Mesmo assim, a impressão de estar sendo observada só aumentou nos dias seguintes.
Às vésperas da viagem, Talita arrumou-se com esmero e foi à cafeteria preferida, no terraço ao alto da Casa de Cultura, com vistas ao Rio, para ver o pôr do sol que não tardaria a chegar. Acomodou-se com inspiração, sem antes, juntar sua sombra e a colocar confortavelmente sentada à sua frente. Olhava firme à sombra, procurava-lhe os olhos, percebia-lhe os sutis movimentos nos indefinidos contornos. Talita estava segura, sensível, queria acordo, e ela sabia - custou, mas descobriu - que a conversa necessária era com a própria sombra. Por isso elas estavam ali, somente as duas, diante do entardecer majestoso da cidade. Talita se concentrava na sombra, e a sombra dizia na sua imobilidade, sussurrava em seu silêncio, e a fazia entender que havia algo errado, ou era algo a ser feito? Mas o quê? Isso ela não conseguia dizer, ou Talita não conseguia entender. Mas havia uma mensagem no ar.
O sol se punha alaranjado entre nuvens arroxeadas, matizando o céu em tons vermelho, laranja, amarelo e azul esverdeado.  Talita sentou-se ao lado da sombra segurando-lhe a mão, e juntas entregaram-se ao espetáculo da natureza. As luzes acenderam-se ao escurecer do dia. Talita levantou, abraçou a sombra e saiu de volta a casa. Ainda faltavam as últimas providências.
Na hora de sair ao aeroporto, o checklist: malas enfileiradas, filhos e noras e netos a postos, passagens na mão, mas, onde está o passaporte? Talita tinha certeza de haver guardado tudo na bolsa, porém, não o encontrava. Um a um dos presentes vasculhou a bolsa, depois as malas e as gavetas e os armários e de baixo das almofadas, e, simplesmente nada do passaporte. Ele evaporou.
Enquanto os filhos ainda procuravam o documento, Talita, em sigilo, saiu em busca da sua sombra que também havia desaparecido. Depois de infrutíferas procuras, Talita pediu para um filho abrir e servir o vinho que estava na geladeira. Com convicção disse: “Vamos festejar! Depois eu procuro e acho o passaporte, fiquem tranquilos. Para quem aguardou sessenta anos por essa viagem, eu posso esperar alguns dias mais, sem problemas.” O filho mais velho chegou a ficar muito brabo com a irresponsabilidade da mãe, mas todos tiveram de acalmar os ânimos ante o fato: o tempo se esgotara. E, sem mais, beberam o vinho, chamaram telepizza e serviram suco às crianças, por que não?
No dia seguinte a notícia era manchete em todos os meios de comunicação: “O avião que partira rumo à Europa desapareceu no mar. Equipes de salvamento de vários países estão se dirigindo ao local para iniciarem as buscas.”