Conhecer Londres havia
sido um sonho acalentado com carinho por infindáveis anos; porém a realidade da
vida cotidiana, sempre tão abarrotada de objetividades e urgências, tratou de
empurrar cada vez mais à frente aquela almejada aspiração. E foi assim, só após
a merecida aposentadoria, que Londres deixava de ser fantasia etérea para se
materializar na sobriedade de suas cores, clima e arquitetura. Talita projetara
ser londrina por seis meses. “Enfim!", pensava ela alegremente.
Passaporte pronto;
matrícula efetivada no curso de inglês a dez minutos a pé de Greenwich; aulas
particulares já agendadas para reforço ao aprendizado da língua; hospedagem
garantida na residência estudantil; orientação para a chegada em Londres e a
compra de um Oyster – cartão inteligente de transporte da cidade; mapas e
roteiros com programação de passeios às margens do despoluído rio Tâmisa e aos
pubs de Shoreditch; além de um bom guarda-chuva na mala, foram as principais iniciativas. No mais, tudo se transformava em detalhes. Detalhes que não
acabavam, mas que a estimulava gerando recorrentes e prazerosos friozinhos na
barriga.
Duas semanas antes da
viagem, Talita promoveu uma pequena festa de despedida aos familiares e
melhores amigos. Ficou emocionada com as manifestações de entusiasmo e apoio.
Também quis se despedir da cidade, que nunca abandonou por mais de trinta dias.
Escolheu pontos especiais para refrescar detalhes na memória. Porém, desde o
primeiro dia do turismo local, a cada passo dado, a cada lugar visitado, a cada
movimento seu para cá ou para lá, tinha a impressão de estar sendo observada.
Era estranha e desconfortável a sensação, que parecia apenas ser uma sensação,
visto que ao conferir, olhando aos lados e observando em torno, tudo parecia
extraordinariamente normal. Era apenas sua sombra quem a seguia onde quer que
ela fosse, mas realmente isso não parecia nada suspeito.
O mal estar, que se
repetia na sequência dos dias, fez Talita comentar com os filhos. Eles acharam
graça. Naturalmente ela estava nervosa, talvez um pouco insegura: “É nisso que
dá uma velhinha se aventurar como adolescente”, zoava o filho caçula. Ela não
tinha como discordar, era provável que andasse ansiosa, talvez um pouco tensa.
Mesmo assim, a impressão de estar sendo observada só aumentou nos dias
seguintes.
Às vésperas da viagem,
Talita arrumou-se com esmero e foi à cafeteria preferida, no terraço ao alto da
Casa de Cultura, com vistas ao Rio, para ver o pôr do sol que não tardaria a
chegar. Acomodou-se com inspiração, sem antes, juntar sua sombra e a colocar
confortavelmente sentada à sua frente. Olhava firme à sombra, procurava-lhe os
olhos, percebia-lhe os sutis movimentos nos indefinidos contornos. Talita
estava segura, sensível, queria acordo, e ela sabia - custou, mas descobriu -
que a conversa necessária era com a própria sombra. Por isso elas estavam ali,
somente as duas, diante do entardecer majestoso da cidade. Talita se
concentrava na sombra, e a sombra dizia na sua imobilidade, sussurrava em seu
silêncio, e a fazia entender que havia algo errado, ou era algo a ser feito?
Mas o quê? Isso ela não conseguia dizer, ou Talita não conseguia entender. Mas
havia uma mensagem no ar.
O sol se punha
alaranjado entre nuvens arroxeadas, matizando o céu em tons vermelho, laranja,
amarelo e azul esverdeado. Talita
sentou-se ao lado da sombra segurando-lhe a mão, e juntas entregaram-se ao
espetáculo da natureza. As luzes acenderam-se ao escurecer do dia. Talita
levantou, abraçou a sombra e saiu de volta a casa. Ainda faltavam as últimas
providências.
Na hora de sair ao
aeroporto, o checklist: malas enfileiradas, filhos e noras e netos a postos,
passagens na mão, mas, onde está o passaporte? Talita tinha certeza de haver
guardado tudo na bolsa, porém, não o encontrava. Um a um dos presentes vasculhou
a bolsa, depois as malas e as gavetas e os armários e de baixo das almofadas,
e, simplesmente nada do passaporte. Ele evaporou.
Enquanto os filhos
ainda procuravam o documento, Talita, em sigilo, saiu em busca da sua sombra que
também havia desaparecido. Depois de infrutíferas procuras, Talita pediu para
um filho abrir e servir o vinho que estava na geladeira. Com convicção disse:
“Vamos festejar! Depois eu procuro e acho o passaporte, fiquem tranquilos. Para
quem aguardou sessenta anos por essa viagem, eu posso esperar alguns dias mais,
sem problemas.” O filho mais velho chegou a ficar muito brabo com a
irresponsabilidade da mãe, mas todos tiveram de acalmar os ânimos ante o fato:
o tempo se esgotara. E, sem mais, beberam o vinho, chamaram telepizza e serviram
suco às crianças, por que não?
No dia seguinte a
notícia era manchete em todos os meios de comunicação: “O avião que partira
rumo à Europa desapareceu no mar. Equipes de salvamento de vários países estão
se dirigindo ao local para iniciarem as buscas.”