Lembranças de fatos passados são reconstituições da nossa história. E é a partir do registro desta história que deixamos um legado às novas gerações a fim de que elas construam os alicerces do tempo futuro. Pensando assim, hoje compartilho fragmentos da minha história, um passeio entre as lembranças vividas nos papéis de filha e de mãe, enquanto sonho e espero ansiosamente viver o de avó.
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Verão e praia. Balneário com poucos veranistas. Lá pelo meio da tarde, nuvens carregadas e muito escuras anunciam um enorme temporal. O vento ainda quente sopra forte, preparando a chegada da chuvarada. Pingos grossos, fortes e frios caem torrencialmente dos céus. E neste cenário está a gurizada toda motorizada em suas superbicicletas a voarem dos pingos e a se afundarem em todas as poças de água. Gritos e perseguições. Sorrisos e acrobacias. Uma penca de irmãos em plena alegria. Felicidade sem tamanho em peripécias permitidas pela mãe. Ao cair da tarde e exaustos de tanto brincar, a molecada abandona as bicicletas no gramado a frente da casa e são recebidos pela dedicada mãe, a postos, esperando sua tropa com toalhas quentinhas e uma caneca de caldo de galinha fumegando para cada um deles. Anjos arteiros satisfeitos e bem cuidados. Aventura sem risco, amor e muitos carinhos de mãe.
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Perto de casa, no lusco-fusco do final da tarde e com trânsito forte nas avenidas, vejo um adolescente arrojado sobre sua prancha de skate descendo ladeira a baixo. Ágil, vai se enfiando velozmente em mil e uma manobras entre os carros apressados. Um perigo! Desde longe percebo as imprudências do guri. Quando me aproximo do moleque, ele faz uma bela demonstração de irresponsabilidade e se atravessa na frente do meu carro. Diminuo drasticamente a velocidade do carro, quase a pará-lo. Abro rapidamente o vidro para dar uns gritos para o rapazote, quando ele se vira, olha bem para mim e abre um lindíssimo sorriso: “Oi mãe! Tudo bom?” Eu estava com a reprimenda na garganta. Olhei ferozmente para o meu filho e disse: “Direto para casa. Temos que conversar. Eu quase te atropelei, meu filho.” Troquei de marcha, acelerei lentamente o carro e fui para casa com o coração na mão; e fiquei a espera do meu capetinha. Era a hora certa para uma conversa bem séria.
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Os filhos mais velhos fizeram ginástica olímpica quando tinham entre 6 e 10 anos, e ambos eram jeitosos para o esporte. O guri do meio era mais tímido, e fazia suas apresentações em alta rotação, mal começava e já terminava toda a série de exercícios, como se assim ele pudesse fugir de ser o centro das atenções. No entanto, o mais velho fazia os movimentos com perfeição, e realizava com graça a paradinha para dar prosseguimento à seguinte sequencia de acrobacias. Chegava em casa e ainda continuava treinando tudo que era possível fazer fora dos tatames. Depois de muitos treinos, e para a conclusão de etapas, havia sempre uma apresentação especial. Num final de ano, com quase todas as arquibancadas ocupadas por pais e familiares a prestigiarem seus artistas mirins, o meu empenhado ginasta, sendo um dos maiores, executaria uma série mais complexa que os demais. Entre os saltos ele deveria fazer o de duas voltas no ar, como ele explicava - um salto duplo. Os pequenos foram os primeiros. Lindos! Depois os maiores, com o aumento das dificuldades. Por último, veio o meu. Porém, ele achou que o público não o valorizaria por ser maior, por já terem visto as bonitas e bem feitas apresentações dos amigos, e, enfim, no topo de sua vaidade, achou que estava em desvantagem perto dos pequeninos. Iniciou a apresentação com segurança e precisão, e na última sequência de saltos duplos, ele concluiu com um belíssimo salto mortal triplo. O público o aplaudiu de pé. E ele ficou radiante. Orgulhoso com a façanha, o meu querido não esperava receber uma enorme bronca e a suspensão de algumas semanas de treino, impingidas pelo professor- treinador. Em casa, todo tristonho, teve de ser consolado e recebeu colinho. Fazer o quê? Mas valeu a lição.
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Aventura. Resolvemos fazer trilha no sítio em que eu brincava quando criança. Era uma bela tarde de outono, e estávamos em duas mães e cinco guris de 8 ou 9 anos. Saímos todos alegres a desbravar novos horizontes. Naturalmente fui a líder da expedição, pois era quem conhecia aquelas bandas. Seguimos por caminhos feitos, andamos por trilhas no meio do mato, atravessamos pequenos banhados e caímos em um enorme banhado cheio de vegetação por cima. Próximo do entardecer eu estava totalmente perdida. Não tinha a menor ideia de qual direção tomar para retornar. Pela paisagem, que não reconhecia, tive a impressão que havíamos saído do sítio, embora não tivéssemos cruzado cerca alguma. As crianças cansadas perceberam que eu brincava para disfarçar, mas não me situava. Sorte foi estar com o celular, recurso que há poucos anos atrás eu não teria. Liguei para minha irmã na cidade. Ela sugeriu que tomássemos o rumo dos eucaliptos e, chegando à mata, que gritássemos. Ela providenciaria que os caseiros saíssem em nossa busca. As crianças estavam apreensivas, meu filho choroso, e eu preocupada. O dia escurecia rápido. Todos gritavam, eles lá e nós aqui, e ao nos escutarmos mutuamente percebíamos a proximidade de casa. Apesar de demonstrar animação com a aventura promovida por mim, não convenci a nenhum deles que fizemos um bom programa. Nunca mais alguém saiu comigo para essas peripécias, não sei por quê.
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Lembranças, história de vida, aventuras, futuro. Assim prosseguimos em nosso itinerário, cada qual com suas lembranças diferentes sobre os mesmos fatos, fazendo história a partir das pequenas e grandes aventuras. O futuro começa aqui e agora. E o meu está sendo escrito a partir da presença e dedicação da minha mãe e da especial participação dos meus filhos, quatro grandes amores da minha vida.