domingo, 19 de maio de 2013

Velhice é sedução


A velhice está na minha frente. Ela é como o pôr do sol, com rajadas de cores vivas a se transmutarem, rápidas, na direção da escuridão de um céu pontilhado por vagalumes. Acolho a velhice viva, morna, e doce como o sol a se esgueirar e se perder no horizonte.

Vejo a velhice como elo que entrelaça o dia luminoso à noite de pouca luz e de muitos mistérios. Ela é dia que vive a vibração da intensidade e da aceleração; ela é noite que ganha novos compassos ao seduzir com sombras e sussurros ao pé do ouvido. Sinto-me profundamente fascinada pela velhice, ela me comove pelo seu brilho, ora discreto ora surreal.

Eu vejo, eu sinto: a velhice tem poesia, tem encantamento, tem convite. A velhice é sedução. Por isso, desejo vivê-la na extensão máxima do meu abraço, desfrutá-la até que ela se consuma todinha em minhas mãos. Faltam-me quatro anos para eu me inserir oficialmente à velhice. E eu e minha velhice já estamos confabulando e fazendo planos, já possuímos acordos e grandes perspectivas para a realização de deliciosos sonhos.

Atualmente tenho feito passeios retrospectivos aos anos vividos, tenho analisado com respeito e consideração os acertos e os erros cometidos. Diferentemente de várias pessoas, se eu pudesse refazer a vida passada, em muitas oportunidades trilharia outros caminhos, faria diferentes escolhas às que fiz, aproveitaria o meu tempo sendo bem mais feliz – eu abandonaria no percurso pesos desnecessários e pessoas sanguessugas. Porém, não nos é facultado o poder de voltar atrás e reviver a vida gasta. Mesmo assim, podemos reorganizar os arquivos da história de vida, tanto na memória quanto no coração, e, neste processo, aprender e desfrutar da paz mais abrangente. Assim, construímos uma nova vida na perspectiva de um futuro melhor ajustado aos nossos anseios, que só a experiência e a maturidade nos proporcionam. Acertando a vida à frente, com consciência, possivelmente acomodaremos frustrações e dores antigas que insistem em invadir nosso presente.

Qualquer singela avaliação do passado me permite ver que foram vastos os tropeços, os equívocos e os arrependimentos, mas o tempo vivido também me expôs ao exercício da sagacidade em lograr obstáculos e ajeitar arestas diante das provocações da vida. Aprendi duras lições engolindo lágrimas ou me esvaindo nelas; ganhei fascinantes horizontes na perseverança de objetivos e ações; tenho vencido minhas lutas me reciclando permanentemente – fazendo do velho eu, um novo eu mais corajoso e confiante.

Hoje olho a vida com outros olhos. Olhos que enxergam mais, mesmo vendo menos. É conquista do tempo vivido, enxergar os detalhes com cautela e deles construir habilmente o conjunto de sua obra. Hoje experimento a vida fluir leve e rápida como embalada pelo vento; percebo meu discernimento se construir claro e ágil ante as situações embaçadas e embaraçosas da vida; sinto ser larga e estendida a gratificação aos pequenos momentos do meu fazer. Hoje consigo varrer fácil a tristeza que quer atrapalhar os meus passos; e sem remorsos, viro as costas às insignificâncias que querem me atormentar. Hoje sei estar entre pessoas e situações que me fazem bem. E sonho com os pés mais firmes ao chão, entregue às nuanças e sutilezas da criatividade inteligente.

A velhice me chama me exclama. Eu a desejo e vou ao seu encontro. Não sou ingênua, sei das dificuldades a que estarei sujeita, pois incessantemente elas foram explicitadas e enaltecidas. Sei que terei dissabores, limitações, abandonos, doenças e problemas, igualmente como as ocorrências a que estive vulnerável em qualquer outro momento da vida. A diferença, agora, é que diante da velhice estou mais segura de mim, sei o que quero e posso com serenidade. E, modéstia à parte, hoje sou muito melhor e mais completa do que sempre fui – sim, estou pronta a viver inteiramente a nova vida velha que me destina.

A velhice é convite para nos deleitarmos com o dia se enroscando  à noite, numa explosão silenciosa de cores, intenções e futuros. Estou plenamente seduzida pelo último ato.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Verdade e mentira


A verdade é uma versão do fato. A mentira é uma inversão do fato.

Quando uma pessoa fala a verdade, ela explicita a sua versão de algum fragmento do fato; não do fato inteiro, pois não conseguimos obtê-lo plenamente com o nosso equipamento de percepção sensorial e extra-sensorial, por mais que nos esforcemos a isso. A versão tenta abraçar o fato como um todo e, por isso, tende preencher os vazios de registro - as partes não capturadas do fato - com algumas ou muitas generalizações e enxertos.  A pessoa que fala a verdade relata a sua produção do fato, com plena e total convicção de estar retratando o fato em si, tal qual ele tenha ocorrido, mesmo que a sua versão do fato esteja bastante transfigurada aos olhos dos outros e de suas versões. A verdade acreditada e defendida verdadeiramente como verdade é efetivamente a verdade verdadeira de quem a defende.

Quando uma pessoa mente, ela inventa um fato, mesmo que essa invenção esteja baseada em fato real. A pessoa que mente não acredita na mentira como sendo uma verdade, ela sabe que a sua verdade é outra. O objetivo da mentira é obscurecer a interpretação pessoal do mentiroso diante do fato - a sua verdade - e assim ludibriar e confundir a pessoa alvo da mentira. As motivações para a mentira são variadas, as circunstâncias e as características do mentiroso também. A mentira é recurso utilizado pelo mentiroso para se esconder ou para obter alguma vantagem, para se valorizar ou alcançar outro fim deveras questionável.  Verdade ou mentira? Esta é a minha versão sobre o tema.

Assim sendo, prossigo nas elucubrações.

Nesta interpretação, a verdade sujeita-se a infinitas versões, no mínimo, tantas quantas sejam as pessoas a analisarem o fato. E o fato será percebido a partir da personalidade e da bagagem de experiências históricas de cada pessoa. A personalidade, por sua vez, constitui-se de algo herdado geneticamente e de valores construídos através das relações interpessoais. A personalidade é um universo com contornos perdidos na vastidão do ser da pessoa, é obra prima e única. Desta forma, a verdade posta em versões, atravessada por peculiaridades da percepção e recheada pelas riquezas das interpretações pessoais, realizadas por personalidades complexas e de alcance infinito, expõem produções criativas das mais sensatas às mais insanas e extravagantes. Mas versões que retratam o fato como ele foi absorvido e entendido, versões da verdade crível e defendida  por seus emissores.

Verdade e mentira. Estive pensando sobre este assunto em várias ocasiões distintas, sempre quando me vi frente às milhares de mentiras circulantes, mentiras impostas goela abaixo, mentiras injustificadas e incompreendidas. Mentiras como vício de uma sociedade deturpada; mentiras como argumentos inconsistentes evocados por pessoas pobres de espírito; mentiras visando vantagem, econômica ou de qualquer outra natureza, frequentemente descortinando graves deformações de caráter de falsos amigos ou dos nossos representantes. Mentiras corroendo valores maiores, mentiras decepando a dignidade humana. Pois, tropeçando em  um montão de mentirinhas, foi quando resolvi escrever.

Pensei. E pensei: defender a verdade já é um exercício complicadíssimo, que nos expõe e nos revela diante de nossas confusões, incoerências e contradições, que nos exige grande arsenal de habilidades, como pensar logicamente, argumentar com inteligência e ponderação, reconsiderar e reconstruir a verdade em versão mais apropriada. Tratar da verdade é algo difícil e exigente, diria inclusive, integralmente desafiante. 

         A verdade não existe como fato, apenas como produção pessoal. E, por isso mesmo, já é uma loucura lidarmos somente com a verdade, por que ainda ter de dar conta da mentira?

Não tolero a mentira, não administro a mentira, não aceito os argumentos que se arrojam a justificar a mentira. Eu não acolho o mentiroso. Mas,  em contrapartida, aceito todas as verdades, por mais malucas que elas pareçam ser. O dono da sua própria verdade tem crédito comigo.