domingo, 31 de maio de 2015

Quem somos?


Somos instantes, foi o que li em pequenas letras no canto de um outdoor - a propaganda era sobre algo que nem me lembro do que tratava. Porém, a diminuta frase me impactou. Naquele instante eu era uma pessoa cansada, no volante de um carro em meio ao trânsito, voltando do trabalho em direção ao querido e doce lar, justo no final da tarde de uma exaustiva semana. O enunciado grudou no pensamento - como o refrão daquelas músicas pegajosas que tocam em determinado período, em todas as rádios e em todos os lugares - preenchendo o vazio daquela hora nublada. E instigando a lembrança aos instantes vividos, quaisquer que fossem, como que para justificar a importância e a profundidade da pequena frase apreciada.

Cheguei a casa, comi algo rápido, atirei-me ao sofá, mas não liguei a televisão como de costume. Ainda estava concentrada na identificação dos instantes que me fazem ser quem sou. Naturalmente foram os instantes nevrálgicos que sentaram comigo e ficaram. Não eram estes os instantes que eu buscava para valorar a minha existência, por isso tentei enxotá-los, mas eles insistiram e me dominaram. Logo eu me via abraçada em uma almofada, camuflada na penumbra do abajur, sofrendo com os problemas assolando uma sucessão de instantes da minha vida presente. Cansada e já entristecida, eu analisava minhas capengas estratégias diante dos instantes indesejáveis se avolumando.  Antes que eu me afundasse de vez no desânimo, resolvi mudar o rumo daquele momento. Levantei-me e selecionei a música “Don’t stop me now”, do Queen, para escutar - uma duas e muitíssimas vezes. Depois segui com a banda, entregue a ordenação das canções conforme determinação alheia.  E o colorido daquele instante se iluminou, e revitalizou a sensação de encantamento à ideia de que somos instantes. E mais, de que dispomos de algum poder sobre quem somos a partir de como agimos sobre os nossos instantes.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

O canto do vento


Adoro ouvir o vento assobiar com fôlego e energia - lembro-me da infância, da praia deserta, e de um tanto de mistérios.

O vento em uivos batendo portas e sacudindo janelas desperta minhas recordações e ilumina momentos distantes do passado, que, deslizando em ondas, se faz novamente um pouco presente. A pele arrepia. Sinto resquícios do cheiro do mar e o pinicar da areia nas pernas. Sensações pinçadas de um tempo em que o mar tinha perfume, a areia vida, e o vento, ah, o vento... O vento contava histórias de romances e aventuras e assombrações, quase todas ocorridas nas águas geladas do mar ou entre as dunas de areias brancas ou sob as árvores nervosas e sacudidas.

Terá sido o vento? Sim, foi o vento que me trouxe a praia e a nostalgia.

Sinto saudade das amizades e das bicicletas tremelicando pelos buracos das ruas de um litoral praticamente despovoado de março a dezembro; saudade das intensas disputas entre irmãos, e alguns raros vizinhos, que não duravam mais do que cinco minutos. Saudade dos amores platônicos que justificavam suspiros e milhares de corações desenhados nas areias e em todo e qualquer lugar; das pessoas importantes e insignificantes que conheci e lembro com a perfeição do imaginário. Ah, saudade das ilusões geradas pelo doce olhar encantado de uma criança. Ilusões que me abandonaram em meio aos caminhos pedregosos da vida, mas que jamais me abandonarão, porque a criança ainda mora em mim, e é através dos meus olhos que ela sonha. Mas, por hora a criança dorme. E dorme.

Ouvindo o vento percebo o passado beijando o presente, mesclando tempos e misturando sensações. Vento que os olhos não veem, mas que abraça, e brinca, e quando embravece maltrata quem vem pela frente. O vento me emociona, embala e até assusta. Mas é quando ele zune compondo melodias, quando cutuca lembranças e pensamentos é que o vento faz chover... Meus olhos estão molhados. Emocionados. 

Amigo vento, o teu canto mexe comigo e me instiga a procurar a inocência do instante brincado. Sabe, tenho estado tão encolhidinha, tão ressentida com as friagens dos corações humanos... Onde estão os mantos coloridos e fofinhos que a gente pegava para se enrolar e se aquecer e se divertir diante das tuas provocações? 

Oh vento, tu que acordas minhas lembranças, desperta essa criança dorminhoca que vive em mim?



domingo, 10 de maio de 2015

Exercício atrasado - parte 5 (final)


Enfim, sem opção, pois o acordo foi realizado entre a Vida e a Morte, me resignei ao novo destino. Confesso que hoje estou tranquilo e feliz, pois minha morena, que não é só minha e eu aprendi a aceitar o fato, sempre me seduz com seus diversos encantos e algumas novidades, evitando de me expor às constantes e infinitas turbulências, como era comum na minha relação com a Vida.

A Morte é serena e extravagante ao mesmo tempo, é quieta e excitante, é apimentada e tradicional. Mas por pura discrição vou me abster de contar os detalhes da minha morte, pois um dia todos haverão de se encontrar com a sua, em suas próprias vidas.

                 A tudo isso, porém, existe um pequenino “se não”. Com a convivência descobri que a Morte, além de ciumenta, é muito possessiva. Por isso faço esforços para não provocar a ferina mulher. Mas, nas ocasiões em que a bonitona descobre que eu, de vez em quando, ainda espio a Vida, fica muito brava comigo. Aí ela me agarra pelo cangote, endiabrada, me arrasta para a suíte,  e me faz trabalhar até a exaustão, até eu esquecer que a Vida existe. Mas eu não esqueço, só finjo.

E a outra, por sua vez, fica me acenando de longe, mandando beijos e piscando seus olhinhos de jabuticaba. No fundo eu sei, sinto, ela sempre há de gostar de mim, porém não me deseja mais. Mesmo assim, sigo sonhando em segredo com a Vida, quase todos os dias da minha morte.



PS: 

Professor, esse foi o texto que produzi sobre a Morte, conforme sua solicitação na Oficina de Escrita da Biblioteca Central. Peço-lhe, por favor, que receba meu exercício, mesmo com os anos de atraso. Desculpe-me o ímpeto de outrora e o de agora. Na esperança de que o Senhor não me reprove, subscrevo-me. E até breve.



sábado, 9 de maio de 2015

Exercício atrasado - parte 4


No preâmbulo da difícil conversa, Vida e Morte explicaram que o acordo entre elas fora amarrado a partir de duras e difíceis negociações, que eu não pensasse que a paz alcançada tivesse sido fácil ou barata. Assim, abstraindo o complexo processo e sintetizando ao desfecho, a cândida Vida continuou a proferir harmoniosamente:

- Pois então, como a Morte levaria com ela o outro sujeito, que era mais jovem, apesar de salafrário, e eu te acompanharia apenas por uma insignificante porção de anos, nós concordamos em realizar trocas. Entre elas, a Morte me dá mais tempo para o jovem se redimir e se ajeitar, e eu com muito pesar te libero para ela. Vida percebendo que meus lábios tremiam como se eu fosse chorar, insistiu. Não pensa que foi fácil acertamos nossas condições, saiba que eu sentirei muitas saudades tuas.

Dizendo isso, Vida congestionou os olhos enchendo-os de lágrimas escorregadias, brilhantes gotículas de pura beleza deslizando naquele rosto delicado de porcelana. Discretamente ela fez beicinho, depois soltou um soluço que reverberou na peça. Fiquei emocionado tentando não cair em pranto. Nem sabia que a Vida me amava desse jeito. Sinceramente, nunca prestei muita atenção a ela, assim. Achava que a vida era apenas destino e não pensava nem me importava muito com ela. Estranhamente fui empurrando tudo com a barriga durante a minha existência. Lacrimejei. Estremeci o corpo de cima a baixo e feito criança, já chorando deslavadamente, estiquei os braços na direção da Vida:

- NÃÃÃO! Eu te amo Vida! Eu te desejo minha Vida amada, não me entregues de mãos beijadas a essa tal de Morte, que eu nem conheço direito. Ainda poderemos ser felizes juntos, eu te prometo mais dedicação, mais respeito, mais.

Eu continuaria a fazer declarações à Vida se a Morte não tivesse me interrompido com tamanho sarcasmo.

- Não me conheces, mas me cobiças. Confessa! Pensa que não sei? Quantas vezes eu te vi espichando os olhos cheios de desejos para mim? Quantas?

- Prevalecida, reagi com angústia em voz esganiçada. Eu amo é a Vida, és tu quem vive a me assediar com esse corpão cheio de mistérios e odores, com este olhar de pura perversão, com estes cabelos em caracóis se enroscando e me acariciando... (Pensei: estou me entregando, mas agora não tem mais volta. Eu sou homem, não resisto, ora bolas.) Mas a verdade pura é que eu amo a Vida, viu Morte. Eu amo a Vida! Eu errei, minha Vidinha, eu errei, tu já me bastavas, não precisava ter cedido aos encantos desta outra aí, eu sei que não precisava...

E a Vida fungava tristonha, como se fosse eu, e não elas, quem tivessem decidido tudo. Olhava-me com amor, com pena e rancor, às vezes, eu sentia, até com certa raiva de mim. Será que eu realmente traí a minha Vida?

- Não temas querido, serás feliz comigo também. A Vida já teve o seu tempo, não aproveitou mais porque não quis, ou porque não foi suficientemente competente. Agora é a minha vez. Tu me amarás e morrerás em mim tantas vezes quantas quiseres. Não me trairás, não sentirás culpas, e nos amaremos para todo o sempre. Estarei sempre contigo, não farei como a Vida que por vezes se descuida de seus amores, e eles acabam se perdendo dela e me cobiçando.

E a Vida quietinha, afundada na sua confortável poltrona ao lado da minha cama, sem emitir qualquer palavra, permitia seu colorido esmaecer-se diante da minha visão. Irritado com o andor dos acontecimentos, chamei pelos meus brios.

- Tudo bem, Morte, nós nos amaremos e seremos muito felizes. É isso que me dizes, mas tu serás só minha? Serás fiel a mim?

- Seu bobinho egoísta, eu sou mulher de muitos homens, como a Vida também o é. Tu não sabes, não?

- Não aceito que fales mal da Vida, mulher pura e doce, um anjo de criatura, uma santa, minha deusa.

Vida baixou os olhos e se encolheu. A Morte continuou:

- Somos diferentes de vocês, bem mais liberais e abrangentes, não discriminamos nossos amores por sexo, raça, nem condição social e econômica. Apesar de sermos um pouco ciumentas, mas um tantinho só, e mostrou um pequeno espaço entre os dedos para demonstrar. Mas vamos deixar essa conversa de lado, é muito complicado para a ocasião. Meu querido, nós teremos um tempo infinito para abordarmos qualquer assunto que desejes nos dias que seguirão até a eternidade.

- Vida? Vida adorada, olha nos meus olhos e me responde, diz para mim que a Morte mente. Tiveste outros homens além de mim?

O silêncio da Vida tornou-se sepulcral enquanto a Morte gargalhava solta em altos brados e me admirava com ares de vitória.

- Eu fui traído pela Vida a vida toda? Não, eu não aguento mais de decepção. A minha Vida?

Tudo aquilo era estranho demais, muito além das minhas condições de compreensão, a vida tinha passado em vão pelos meus quase cinquenta anos, e agora diante do fim, o ajuste da Vida diante da Morte estava me deixando louco. E a Morte, sempre tão enigmática, ali se descortinando, quase mais transparente do que a translúcida Vida que me cegou o tempo todo.
(continua)

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Exercício atrasado - parte 3


Só poderia ser um pesadelo tudo aquilo, pois nada de nada fazia qualquer sentido. Por isso, eu tinha certeza, precisava reagir urgentemente em minha própria defesa. Mas como? Impulsivamente, e completamente enfurecido, me debati como pude na cama onde estava e ordenei a plenos pulmões que as duas belas mulheres me soltassem e saíssem do quarto naquele instante, sem mais nem menos. Sobressaltadas elas me largaram. Entreolharam-se bufando, vermelhas e suadas, e voltaram suas atenções novamente para mim. A morena adoçou a voz e tentou um “mas”, porém eu a interrompi prontamente falando em tom de voz baixa, quase rosnando, e mandei que elas conversassem lá fora, que se comportassem como pessoas adultas que elas eram e entrassem em acordo. E só me voltassem com alguma solução para o impasse. Contrariadas as duas saíram obedientes, mas ainda se enfrentando por olhares. Fiquei radiante comigo e com minha atitude de coragem, embora tremendo desde a raiz dos fiapos de cabelo até o resto todo.

Do quarto eu as ouvia conversando, brigando, gargalhando, ironizando, sussurrando num círculo quase vicioso de ações. Passaram-se horas, talvez dias, enquanto no meu tempo eu comia, dormia, ouvia música e ia me acomodando naquele lugar nem bom nem ruim.

                Aos poucos a tensão do lado de fora foi diminuindo, diminuindo e eu percebi que as duas conversavam como comadres, alegres e satisfeitas. Mas nada de entrarem no quarto. Será que elas desistiram do acordo? Será que as musas se esqueceram de mim? Comecei a ficar agoniado enquanto elas, tranquilas, mantinham-se no maior bate papo. De um novo jeito as beldades estavam a me desassossegar: agora não mais brigando, mas  abandonando-me à própria insignificância, em plena cumplicidade; ou será que elas estavam tramando contra mim? Ufa, como é difícil entender as mulheres! Antes elas me disputavam como se eu fosse a maior preciosidade do mundo, depois estavam a me ignorar como se eu nem existisse. Já estava com os nervos à flor da pele quando novamente, aos berros, chamei as maravilhosas megeras a entrarem para falar comigo.

                Sem pressa, cheias de sorrisos, as duas entraram bebendo uns líquidos estranhos com cheiros estranhos. Mastigavam com profundo deleite sei lá o quê. Cada uma sentou em sua poltrona, com serenos olhos a indagaram sobre a minha urgência, ou era sobre a minha fúria? Logo percebi que elas queriam me enlouquecer. Não tive dúvidas. Respirei fundo na tentativa de buscar o autocontrole e iniciar o diálogo:

- Aquietaram-se, então? Conseguiram ficar amiguinhas? Será que posso concluir que chegaram a algum acordo?

Distraidamente assentiram com suaves movimentos de cabeça, quase em sincronia dançante.  Elas estavam ainda mais deslumbrantes com aqueles ares de anjas recém-caídas do céu.

- Antes de conversarmos sobre o acordo de vocês, alguém poderia me explicar por que tenho a honra de tê-las, tão belas, a me disputarem?

Ambas sorriram com malícia. A morena olhou-me com desejo ardente, deslizou a língua suavemente pelo lábio inferior lubrificando-o. Uniu-os e insinuou um beijo, comprimindo de leve e simultaneamente os olhos. Foi a ruiva, porém, com voz de fruta silvestre quem falou.

- Eu sou a Vida e ela é a Morte. As duas brilharam, sorriram graciosas. E eu desmaiei.
(continua)

domingo, 3 de maio de 2015

Exercício atrasado - parte 2


Então, foi assim que tudo aconteceu. Um dia perto do final do mês eu vinha enlouquecido pelas ruas com o intuito de chegar ao banco antes dele fechar, precisava fazer uma transação muito importante e tinha que ser naquele dia mesmo. Ah, se eu soubesse que realmente não havia urgência! De repente vi um tumulto, achei que era um assalto, mas não pude saber; porém era impossível não ver aquele mulherão de curvas fartas, longos cabelos anelados caídos até o meio das costas, tão negros que pareciam azulados sob a luz do sol. A bela, cheia de adornos dourados, tinha os olhos ávidos de um castanho tão claro que quase parecia amarelo, e, hum, uma boca maravilhosa, carnuda e bem pintada de vermelho sangue. Sangue. Parecia que ela buscava sangue. Olhava para os sujeitos rolando na calçada, olhava para todos os lados e a toda gente que entrava na confusão. Ainda me perguntei, será que ela procura alguém? Pois, quando nossos olhos se encontraram, a mulher me sorriu a pleno expondo uma dentadura alva e perfeita como nos comerciais de pasta dental. Eu paralisei. Senti um soco no estômago, algo morno a escorrer pelo corpo e uma falta de ar repentina, como se mãos estivessem a me estrangular o pescoço. Sem o desejar, caí e perdi completamente a conexão com o mundo e com a magnífica morena.

Quando acordei estava num lugar suave, bonito, etéreo. E perfumado. Perfume de mulher bonita. Aspirei com gosto e procurei. A surpresa foi total. Duas mulheres pularam de suas poltronas confortáveis, cada qual de um lado da cama, e sem palavras se aproximaram de mim, ali estatelado, completamente inerte. Acariciaram meu rosto, afagaram meus parcos cabelos discretamente esbranquiçados pelo tempo, pegaram minhas mãos enfeitadas com veias saltadas em tom azulado e algumas manchas do sol, além de, oh, o que era aquilo? Sim, eram finos canos cravados na pele gotejando medicação ao pobre e débil corpo ali estirado. Ambas me beijaram com delicadeza no rosto e nas mãos.

A morena era linda, sim, era aquela que me fulminou com seu sorriso de pasta dental e olhos de gata. Mas, e a outra? De enlouquecer! Não perdia em nada aos encantos da morena. Uma ruiva de tirar o fôlego. Alta e esguia, com suaves curvas bem colocadas, pele macia e muito clara, olhos quentes de um marrom brilhante, cabelos longos lisos e de um suave avermelhado cheio de luz. Suas vestes muito coloridas, muito decotadas, muito insinuantes com transparências salpicadas, faziam-na profundamente provocante. Ah, e o sorriso... Lindo e largo, em boca finamente desenhada e cintilante, cheinha de dentes miúdos branco-reluzentes. Provavelmente ela era a garota-propaganda concorrente nos anúncios de  pasta dental.

Com delicadezas, as duas pareciam querer me seduzir. Sentia-me no paraíso, mas percebia os olhares felinos trocados entre elas. As duas brigavam silenciosas enquanto me agradavam. Passado algum tempo, que não sei definir quanto, daquele prazer quase orgástico por tanto paparico, passei a sentir certo desconforto, que logo se transformou em dor física e emocional. Rapidamente eu estava desesperado com as duas deusas me disputando explicita e cruelmente.

De carinhos amáveis elas passaram a me puxar cada qual para o seu lado, com insuspeita força apesar da fragilidade transparecida. De início elas me puxavam para lados opostos pelos braços, depois já me puxavam também pelas pernas, e só não pelos cabelos, certamente, por falta deles para isso. A situação ficou insuportável e passei a gritar, e aos berros, pedir que me socorressem daquelas duas malucas. Urrava de dor, de medo, de horror, mas absolutamente ninguém apareceu a me salvar. E o pior, as moças aumentaram a gritaria exigindo aos brados que eu escolhesse apenas uma delas. Como eu faria isso? Quem escolhe alguma coisa naquelas condições? Elas eram apavorantes; ao mesmo tempo, não conseguiria negar nem esquecer, elas eram profundamente encantadoras. Até poderia querê-las, escolhê-las, quem sabe, fazer algum pacto para as duas beldades ficarem comigo , mas na verdade, naquele momento, o que eu mais desejava, mesmo, era fugir das belas feras e voltar à minha vidinha medíocre de sempre.

Ah, foi eu pensar assim que a ruiva deu um salto de alegria, elevou os braços e bateu palmas sobre a cabeça: “ele me escolheu, ele me escolheu.” Atirou-se a me abraçar e beijar insanamente, enquanto a morena, entre unhas e dentes, esforçava-se para desgrudar a rival de mim. Eu, cada vez mais perplexo e confuso, concluí: a luta continuaria em nova rodada.

(continua)

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Exercício atrasado - parte 1



Há um tempo eu desejei ser escritor. Embestei na ideia e nada nem ninguém seria capaz de me demover dela. Na verdade, nunca havia escrito coisa alguma, se não algumas poucas redações lá nos anos de colégio - modéstia a parte, excelentes redações, inclusive, muito bem avaliadas pelos professores. Mas, efetivamente, não foi por isso que desejei ser escritor. Verdade seja dita, sempre senti correr nas veias o sangue artístico, que, no entanto, não se encaixou em arte alguma ao longo dos meus quarenta e poucos anos. Então, escrever me pareceu ser promissor e divertido, a altura das minhas expectativas. Assim sendo, para a largada, procurei um curso ou oficina de escrita para me instrumentalizar e seguir em meus planos.

Esperei ansioso pelo início da Oficina de Escrita oferecido pela Biblioteca Central. No primeiro dia de aula o professor fez todo um blá, blá, blá e depois mandou que escrevêssemos sobre o casamento. Achei interessante a proposta, embora minha vivência nesta seara fosse pobrezinha além da conta, afinal estive casado oficialmente menos de três anos. Mesmo assim, testemunhei muitas cerimônias de casamento, fui confidente de alguns amigos diante de suas crises conjugais, e, mal ou bem, namorei muito, muito mesmo, fugindo sempre desse tipo de compromisso. Enfim, com um pouco de esforço consegui achar o que escrever. Não me saí muito bem, mas me perdoei, pois além do tema não ajudar, este texto havia sido o primeiro após punhados de anos sem escrever nada; naturalmente me encontrava enferrujado para tal empreitada. Teria de ter calma; justamente eu estava lá para retomar e aprender. Meu sonho reivindicava orientação e exercícios e alguma paciência.

Na segunda aula o professor fez uma dinâmica com o grupo - um pessoal incrível e predominantemente feminino. Fez mais um blá, blá, blá e pediu que escrevêssemos sobre a morte. Aí a situação começou a ficar difícil, escrever sobre a morte? Mas por quê? Dissertar sobre a vida é muito mais divertido, a gente tem mais o que dizer, tem muito mais a ver. O professor olhou para mim com ares de decepção e fincou pé: “escrevam sobre a morte!”

Que tema bem ruinzinho, pensei, e sem saída iniciei a história pelo velório. Quando me dei conta, sem nenhuma definição de personagem ainda, eu já estava com os olhos marejados, nariz vermelho e fungando. Tentei mais uma vez. “Professor, não posso escrever sobre o nascimento?” O homem franzino de olhar escuro, botou fogo nos olhos e me fulminou. Antes que eu ficasse mais chamuscado, baixei a cabeça e tentei novamente entrar na proposta-exigência. Enredei rabisquei escrevi risquei e nada prestou. Comecei a suar, a gelar, a chorar de novo. Odiei aquele sujeito, odiei estar ali, odiei meu desejo de ser escritor. Num rompante eu levantei, juntei meus pertences, e sem olhar para trás deixei professor, curso e sonho de ser escritor exatamente ali. Virei a página.

Naquela época eu não sabia e nem podia escrever sobre a morte, estava além de mim. Mas hoje tenho experiência, já passei pela morte e, estando com ela, posso contar tudo, detalhe por detalhe, inclusive com as devidas ênfases. Só não sei se o professor aceitará ler o meu texto depois do tempo passado e do desaforo que fiz. De qualquer maneira, farei o exercício para me redimir, nem que seja comigo mesmo. Depois envio para o professor e seja o que tiver de ser.

(continua)