sábado, 24 de setembro de 2011

Aderindo


Ando sem inspiração. Mas escrever é vício que não consigo, nem quero deixar de ter. Como administrar as duas situações em desencontro? As idéias e sensações que costumam brotar na mente e no coração, e escorregarem através dos dedos saltitantes no teclado do computador, neste momento deram-me trégua e, com certeza, foram passear. No entanto, uma lembrança recorrente leva-me ao artigo do Eduardo Galeano e me faz pensar na carta dirigida ao “Estimado senhor Futuro”. Talvez seja este um caminho de conciliação entre a inspiração ausente e o desejo fervilhante de me comunicar pela escrita, passeando por um tema de extrema relevância para mim: o futuro do mundo em que vivemos.
Em “O Aquém”, quem assina é “Um terrestre”. O desejo deste não é fazer contato com o senhor Futuro para obter a previsão do seu próprio futuro, mas sim fazer uma solicitação justa e preocupada, a este misterioso senhor, o Futuro, que representa “a promessa que nossos passos perseguem, querendo sentido e destino.”
Iluminado, com senso crítico a flor da pele, e com habilidade de quem conhece as incoerências dos homens, das instituições, dos políticos, e do mundo enfim, Galeano fala sobre o grande risco na voz de um humilde ser terrestre: “Estamos ficando sem mundo.”
Os violentos o chutam como se fosse uma pelota. Brincam com ele os senhores da guerra, como se fosse uma granada de mão; e os vorazes o espremem como se fosse um limão. A continuar assim, temo eu, mais cedo do que tarde o mundo poderá ser tão só uma pedra morta girando no espaço, sem terra, sem água, sem ar e sem alma.
Em poucas linhas lemos um sincero e agonizante pedido por socorro.
E nas palavras que redijo me solidarizo ao alerta jogado ao vento na expectativa de encontrar os distraídos de boa vontade.  Somo minha voz à dos lunáticos e fanáticos pela preservação da natureza, da beleza e da pureza, e neste coro desejo ser capaz de chacoalhar com a estabilidade dos alienados, esses pequenos construtores das fortalezas dos grandes e onipotentes homens do poder.  Tenho a pretensão de semear esperança ao crescimento da avaliação crítica, almejando que ela floresça na terra dos egoístas que não ligam para o pouco de mundo que deixarão aos seus.
“... senhor Futuro. Eu peço, nós pedimos, que não se deixe despejar. Para estar, para ser, necessitamos que V. Sa. siga estando, que V. Sa. siga sendo. Que V. Sa. nos ajude a defender sua casa, que é a casa do tempo... Por nós e pelos outros: os outros que virão depois, se tivermos um depois.”
“Um terrestre” assinou aquela carta, “Uma terrestre” assina este escrito. E quantos mais assinariam esse chamado?
Sr. Futuro, teremos um depois?

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Cotidiano



     Pensar em cotidiano remete-me a algo repetitivo, monótono e sem graça. Mas quando comecei a pensar sobre o meu cotidiano tive outra sensação bem diferente. Tentei fazer um roteiro do meu dia a dia desde o primeiro piscar.
     Lentamente abro os olhos: estou viva. Sinto uma moleza em todo o corpo e estico-o sobre a cama e por baixo dos lençóis. Então fecho novamente os olhos e começo a me preparar, mentalmente, para a aventura que está por vir.
     Sinto o meu dia como uma aventura onde a rotina se entrelaça ao inesperado. Tudo é sempre igual e sempre muito novo. Todo o dia as regras me fazem repetir ações e compromissos assumidos, no entanto, a irreverência moleca mantida dos tempos da infância e da adolescência me permite reinventar caminhos e procedimentos, criar cara nova em cada pequeno gesto ou decisão.
     Não é divagação, não. Ao levantar, vou logo ao café, e sentada à mesa em minha própria companhia, fico a sonhar o resíduo do sonho que não se fez no sono. É usual e repetitivo, como se fosse retrato. Mas também é fantasia e imaginação, é filme de roteiro improvisado.
     Rapidamente os devaneios do desejo cedem espaço às pressões da obrigação. Mas desejo e obrigação andam juntos, apenas alternando-se em presença e intensidade, conforme o que faço e a hora do dia em que me encontro.
     Meu papel de mãe é o primeiro a impor-se.  Aciono normas convencionadas para cumprir com a formação e a educação do filhote. Acordá-lo é dever. E assim, no cotidiano de nossa convivência, apresento e exijo as regras indispensáveis para a construção da sua personalidade. O respeito aos horários, aos limites, às tarefas, ao cuidado pessoal, à convivência social e ao mínimo de etiqueta são algumas das referências que permeiam nossas vidas. Mas ser mãe é, também, viver o instinto, ser impulso. E o desejo encontra brechas para abraçar, beijar, brigar e brincar.
     Quando eu ensino sou previsível, quando me emociono sou surpresa, quando sonho sou leveza. E sonho muito como mãe, porque ser mãe é projetar, é aspirar, é viajar ao futuro do filho, com ou sem a sua permissão. Viver a maternidade é aventurar-se entre realizações e frustrações. É expor-se ao desafio do inimaginável.
     O papel de mãe não esmaece ao longo do dia, mas permite o compartilhamento com outros papéis que desempenho. Cuido da casa com a objetividade da prática, porém estou sempre a enfeitá-la com a alma de artista. Vou seguidamente ao banco, ou efetuar pagamentos ou fazer algum depósito. Não raro vem o susto: onde está o dinheiro que estava aqui? Também me aventuro pelo trânsito, o que sempre desperta as mais variáveis sensações. Dirigir me traz muita paz, mas é comum ter reações de profunda irritação: é quando consigo extravasar e atualizar todo o repertório de expressões socialmente indesejáveis e instintivamente gratificantes.  São rotina e criação andando como irmãs.
     O supermercado é o passeio indesejável, mas necessário. Facilmente loto o carrinho de compras esquecendo-me de levar os poucos produtos de que realmente necessitava. Cozinho diariamente e, vez que outra, supero o meu próprio recorde: ficar o menor tempo possível na execução gastronômica sem perder a qualidade do colorido saudável.         
O trabalho profissional é realizado sempre no mesmo local, sempre sentada na mesma poltrona, sempre toda atenção ao interlocutor, sempre uma hora para cada pessoa. Porém, sempre histórias únicas e personificadas, diferentes em fatos, interpretações e emoções. Sempre o novo se descortinando e me desafiando em conhecimento, em estrutura, em procedimentos e recursos. Sempre uma incursão ao mundo que se desvenda através de pedidos de socorro; sempre uma nova dimensão da vida apresentada através do ser do outro. Na psicologia, me aventuro a viver e sofrer as vidas que, não sendo minhas, tornam-se pertencentes a minha história. Faço-me parte da existência da outra vida com a proximidade, o aconchego e o aquecimento humano. No entanto, faço-me apenas ajuda adotando o distanciamento frio e necessário para a intervenção.
     Diariamente, ao voltar do trabalho, trago em minha bagagem uma riqueza imensurável de experiências e um quanto de mistérios renovados. Quando descanso, no relaxamento promovido pela inércia, emociono-me com a aventura fascinante de poder viver seres, papéis, sonhos, erros e desafios. Muitos dos meus momentos acontecem com detalhes inesperados através dos quais tenho que me reinventar e me transformar obrigatoriamente. E todas essas peripécias permitidas por uma rotina flexível que, organizada, me convidam a ir um pouco além de mim mesma.
     À noite, ao sinal do toque de recolher, ajeito-me na cama, pego um livro e viajo a convite do autor. Apago a luz e aquieto-me às boas sensações do lugar e do pensamento. E nessa hora, entregando-me totalmente à liberdade do inconsciente, ponho-me a viver, em sonho, minha última aventura do dia.



SONHO

Sonho pode ser um bolinho leve,
frito, feito com farinha, ovos e leite.
Mas, o "meu" sonho
é um bolinho apertadinho,
de duas pessoas, feito de imaginação,
férias e muito amor.

ÚLTIMO ATO

QUERIA

(12.02.2011)

Queria me despedir
Queria destruir
Queria simplesmente sumir.

Pensar?
Refletir?
Pesar?
Mentir?
Amar?
Fugir!

Queria me abandonar
Queria te deixar
Queria com tudo acabar.

Sentir?
Tentar?
Fingir?
Roubar?
Reprimir?
Voar!

Queria fugir, voar.
Morrer.
Mas vou dormir, sonhar.
Esquecer.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

ROSA HELENA

Meu pai perdeu minha mãe



A tarde ia despedindo-se daquela segunda-feira de agosto quando o celular tocou. Era minha irmã. Estranhei!
Depois do usual e objetivo cumprimento ela começou:
- O pai e a mãe foram ao centro porque eles queriam...
Interrompi:
- Fala logo, o que foi que aconteceu?
Parecia que minha irmã estava contando aquela velha historinha do gato no telhado, quando o sujeito, diante da necessidade de dar uma notícia triste, começa narrar o fato pela cena secundária.
- Eu estou contaaandooo!! Respondeu, tentando manter a calma. É que o pai perdeu a mãe. No centro.
- Como assim?
Meu pai beira os 90 anos e minha mãe tem cinco anos menos. Eles são dois idosos independentes que gozam de boa saúde. Porém, tratamos de cuidá-los de perto, monitorando-os sem tolhê-los.
Ela continuou:
- Falei com o Beto (seu filho de 24 anos) e ele está te esperando para vocês irem ao centro. Eu estou a caminho da Universidade porque tenho aulas a dar daqui a pouco.
Corri em busca de mais subsídios e entender melhor a situação.
Meu pai estava em casa, mas não conseguia explicar nada. Com a voz embargada conseguiu apenas dizer onde havia deixado minha mãe. Saímos ligeirinho. No caminho comecei a entender o contexto. O casal saiu junto de carro, com ele na direção, para comprarem algo no centro. Ele a deixou em uma ladeira e seguiu de carro. Certamente combinaram o reencontro, mas não se acharam. Depois de procurá-la ele voltou a casa, e nada de notícias dela. Isso tudo havia acontecido há mais de duas horas atrás.
Eu e meu sobrinho rumamos ao centro, num típico dia de inverno. Estava frio e garoando.
Nossa maior preocupação: minha mãe teve pneumonia e trombose na perna há uns três meses. O frio e a umidade, a rua movimentada, acidentada e em declive formavam conjunto de iminentes riscos às suas condições de recuperação. A caminho do centro contatamos o Hospital da Santa Casa que fica perto do local onde a aventura começou. Nenhuma entrada. Ufa!
Desci do carro que meu sobrinho dirigia. Combinamos ações e ficamos de nos falar pelo celular. Entrei na suposta loja da compra. “Sim, uma senhora de cabelo cortadinho assim? Ela passou por aqui, sim, ela queria comprar uma borracha para vedar a panela de pressão, não é? Mas nós não tínhamos e ela desceu a outra loja. Mas já faz bastante tempo!” Aí é que eu soube da importância da peripécia: uma borracha de vedar panela de pressão!
Fui às lojas próximas descrevendo a figura da minha mãe aos vendedores, porém nenhuma informação a mais eu obtive. Estava ficando aflita e preocupada quando o celular tocou. Era a zeladora do prédio em que meus pais moram:
- A sua mãe acabou de chegar!
A zeladora estava ofegante, tensa, e não falou mais nada. Eu consegui ficar aliviada com essa informação, e não consegui questionar absolutamente nada mais. Meu sobrinho e eu voltamos meditativos ao ponto de partida, atravessando a cidade em pleno pico da movimentação do trânsito.
Antes de falar com meus pais, soube que a mãe chegou do centro por ônibus de lotação, e estava aos prantos. Entrei no apartamento. Na sala estavam os dois sentados lado a lado no sofá, silenciosos. Ela com os olhos ainda vermelhos e de expressão bem ofendida. Ele com voz macia e cheia de culpa.
- Minha filha, a mãe acha que eu a abandonei, que a deixei no centro de propósito. Mas foi um mal entendido! Eu nunca faria isso!
- Eu fiquei uma hora te esperando na esquina que tu me deixaste, de pé e com frio. E preocupada. Pensei que tivesse acontecido algo contigo.
- Mas eu já te expliquei. Estacionei o carro e fiquei te esperando uns 45 minutos. Quando percebi que tu não vinhas, segui à loja que pensei tivesses entrado, e ninguém nem sequer tinha te visto. Eu te procurei.
- Como é que eu ia saber onde conseguirias estacionar o carro? E se é que conseguirias? E com tantos carros parecidos, como eu ia te achar?  Na próxima vez eu vou sozinha para onde eu quiser.
Antes que se prolongassem em queixas, ressentimentos e sentimentos de culpa infrutíferos, eu encaminhei a conversa ao passo seguinte.
- Mãe e pai: houve um mal entendido, e isso acontece. Mas vamos pensar juntos, onde estão os erros?
Os dois pararam e olharam para mim buscando a resposta. Onde estão os erros? Quem foi que errou? Eles erraram?
- Vocês têm celulares?
“Eu esqueci o meu em casa”, respondeu a mãe. “O meu estava comigo, mas descarregado, não me dei conta”, disse o pai.
- E o que vocês acham disso? Os dois têm aparelhos celulares, mas saem sem conferir o recurso que ambos dispõem.
- Ah, pois é!  A gente não está acostumada a usar o celular, mas vamos prestar mais atenção. Isso não vai mais acontecer. Viu, mãezinha, na próxima vez vamos levar nossos celulares.
Detalhe: eles têm telefone celular há muitos anos. Essa era a oportunidade e prossegui enfatizando que a questão não se resumia apenas ao celular. Sinalizei a possibilidade de minha mãe ter feito contato através de telefone público, ter solicitado ajuda ao policiamento ou mesmo dentro de algum estabelecimento comercial, etc. Chamei a atenção do pai ao perigo dele ficar sentado no carro, exposto a toda e qualquer abordagem indesejável. Depois concluí:
- O telefone é de grande valia e teria minimizado o problema de hoje. Mas onde está o outro erro?
Agora sim, o ar de surpresa foi maior. Outro erro? Os olhos suplicantes para que eu concluisse nossa conversa, ali mesmo, apareceu nos dois. A culpa já havia sido depositada no celular, poderíamos encerrar esse capítulo, deixar por isso mesmo. Mas continuei.
- Qual a urgência que vocês tinham de ir ao centro hoje, um dia frio e úmido, e quase no final da tarde, hora de grande movimento de gente e carros? Por que tinham que ir ao centro em dia de semana, se aos sábados o centro fica bem mais tranqüilo? Por que não solicitar ajuda ou companhia quando vocês sabem que, principalmente eu, estou disponível a compor e a colaborar com as necessidades de vocês? Não foi hoje que ressaltei isso a vocês?
Meu sobrinho também os chamou a atenção para o maior cuidado e o compartilhamento das informações sobre suas ações, além de enaltecer o quanto eles nos são preciosos. Pai e mãe ficaram mais calmos e, talvez, um pouco mais alertas diante das próximas empreitadas. Mas a família continua sempre de “anteninhas ligadas”. Dias depois do episódio nosso casal, super poderoso, viajou para ficar três semanas de férias no Rio de Janeiro. Sozinhos. Haja coração!
E de Porto Alegre mantivemos contato telefônico freqüente com a dupla em férias. Nossa esperança era que, mais atentos, nenhum deles se perdesse por lá, pois resgatá-los no Rio seria bem mais complicado! Mas, o que não faríamos por esses nossos heróis?


sexta-feira, 2 de setembro de 2011

RETALHOS

ESTRANHO



Estranhos à volta, tanta gente
Ocupando espaços, cruzando por mim
Nas ruas, nos mercados, nesta existência
Desconhecidos sentados ao meu lado
Num contínuo revezamento de corpos
No trem do tempo que percorre a vida.

Tem gente à volta, ausente,
Ocupando espaço, parando em mim
No corredor, no quarto, na cozinha,
Gente sentada ao lado, deitada sobre
No sofá, na cama, na vida.

Estranho! Sempre foste pessoa estranha, alheia,
Um desconhecido estacionado na minha vida!