A tarde ia despedindo-se daquela segunda-feira de agosto quando o celular tocou. Era minha irmã. Estranhei!
Depois do usual e objetivo cumprimento ela começou:
- O pai e a mãe foram ao centro porque eles queriam...
Interrompi:
- Fala logo, o que foi que aconteceu?
Parecia que minha irmã estava contando aquela velha historinha do gato no telhado, quando o sujeito, diante da necessidade de dar uma notícia triste, começa narrar o fato pela cena secundária.
- Eu estou contaaandooo!! Respondeu, tentando manter a calma. É que o pai perdeu a mãe. No centro.
- Como assim?
Meu pai beira os 90 anos e minha mãe tem cinco anos menos. Eles são dois idosos independentes que gozam de boa saúde. Porém, tratamos de cuidá-los de perto, monitorando-os sem tolhê-los.
Ela continuou:
- Falei com o Beto (seu filho de 24 anos) e ele está te esperando para vocês irem ao centro. Eu estou a caminho da Universidade porque tenho aulas a dar daqui a pouco.
Corri em busca de mais subsídios e entender melhor a situação.
Meu pai estava em casa, mas não conseguia explicar nada. Com a voz embargada conseguiu apenas dizer onde havia deixado minha mãe. Saímos ligeirinho. No caminho comecei a entender o contexto. O casal saiu junto de carro, com ele na direção, para comprarem algo no centro. Ele a deixou em uma ladeira e seguiu de carro. Certamente combinaram o reencontro, mas não se acharam. Depois de procurá-la ele voltou a casa, e nada de notícias dela. Isso tudo havia acontecido há mais de duas horas atrás.
Eu e meu sobrinho rumamos ao centro, num típico dia de inverno. Estava frio e garoando.
Nossa maior preocupação: minha mãe teve pneumonia e trombose na perna há uns três meses. O frio e a umidade, a rua movimentada, acidentada e em declive formavam conjunto de iminentes riscos às suas condições de recuperação. A caminho do centro contatamos o Hospital da Santa Casa que fica perto do local onde a aventura começou. Nenhuma entrada. Ufa!
Desci do carro que meu sobrinho dirigia. Combinamos ações e ficamos de nos falar pelo celular. Entrei na suposta loja da compra. “Sim, uma senhora de cabelo cortadinho assim? Ela passou por aqui, sim, ela queria comprar uma borracha para vedar a panela de pressão, não é? Mas nós não tínhamos e ela desceu a outra loja. Mas já faz bastante tempo!” Aí é que eu soube da importância da peripécia: uma borracha de vedar panela de pressão!
Fui às lojas próximas descrevendo a figura da minha mãe aos vendedores, porém nenhuma informação a mais eu obtive. Estava ficando aflita e preocupada quando o celular tocou. Era a zeladora do prédio em que meus pais moram:
- A sua mãe acabou de chegar!
A zeladora estava ofegante, tensa, e não falou mais nada. Eu consegui ficar aliviada com essa informação, e não consegui questionar absolutamente nada mais. Meu sobrinho e eu voltamos meditativos ao ponto de partida, atravessando a cidade em pleno pico da movimentação do trânsito.
Antes de falar com meus pais, soube que a mãe chegou do centro por ônibus de lotação, e estava aos prantos. Entrei no apartamento. Na sala estavam os dois sentados lado a lado no sofá, silenciosos. Ela com os olhos ainda vermelhos e de expressão bem ofendida. Ele com voz macia e cheia de culpa.
- Minha filha, a mãe acha que eu a abandonei, que a deixei no centro de propósito. Mas foi um mal entendido! Eu nunca faria isso!
- Eu fiquei uma hora te esperando na esquina que tu me deixaste, de pé e com frio. E preocupada. Pensei que tivesse acontecido algo contigo.
- Mas eu já te expliquei. Estacionei o carro e fiquei te esperando uns 45 minutos. Quando percebi que tu não vinhas, segui à loja que pensei tivesses entrado, e ninguém nem sequer tinha te visto. Eu te procurei.
- Como é que eu ia saber onde conseguirias estacionar o carro? E se é que conseguirias? E com tantos carros parecidos, como eu ia te achar? Na próxima vez eu vou sozinha para onde eu quiser.
Antes que se prolongassem em queixas, ressentimentos e sentimentos de culpa infrutíferos, eu encaminhei a conversa ao passo seguinte.
- Mãe e pai: houve um mal entendido, e isso acontece. Mas vamos pensar juntos, onde estão os erros?
Os dois pararam e olharam para mim buscando a resposta. Onde estão os erros? Quem foi que errou? Eles erraram?
- Vocês têm celulares?
“Eu esqueci o meu em casa”, respondeu a mãe. “O meu estava comigo, mas descarregado, não me dei conta”, disse o pai.
- E o que vocês acham disso? Os dois têm aparelhos celulares, mas saem sem conferir o recurso que ambos dispõem.
- Ah, pois é! A gente não está acostumada a usar o celular, mas vamos prestar mais atenção. Isso não vai mais acontecer. Viu, mãezinha, na próxima vez vamos levar nossos celulares.
Detalhe: eles têm telefone celular há muitos anos. Essa era a oportunidade e prossegui enfatizando que a questão não se resumia apenas ao celular. Sinalizei a possibilidade de minha mãe ter feito contato através de telefone público, ter solicitado ajuda ao policiamento ou mesmo dentro de algum estabelecimento comercial, etc. Chamei a atenção do pai ao perigo dele ficar sentado no carro, exposto a toda e qualquer abordagem indesejável. Depois concluí:
- O telefone é de grande valia e teria minimizado o problema de hoje. Mas onde está o outro erro?
Agora sim, o ar de surpresa foi maior. Outro erro? Os olhos suplicantes para que eu concluisse nossa conversa, ali mesmo, apareceu nos dois. A culpa já havia sido depositada no celular, poderíamos encerrar esse capítulo, deixar por isso mesmo. Mas continuei.
- Qual a urgência que vocês tinham de ir ao centro hoje, um dia frio e úmido, e quase no final da tarde, hora de grande movimento de gente e carros? Por que tinham que ir ao centro em dia de semana, se aos sábados o centro fica bem mais tranqüilo? Por que não solicitar ajuda ou companhia quando vocês sabem que, principalmente eu, estou disponível a compor e a colaborar com as necessidades de vocês? Não foi hoje que ressaltei isso a vocês?
Meu sobrinho também os chamou a atenção para o maior cuidado e o compartilhamento das informações sobre suas ações, além de enaltecer o quanto eles nos são preciosos. Pai e mãe ficaram mais calmos e, talvez, um pouco mais alertas diante das próximas empreitadas. Mas a família continua sempre de “anteninhas ligadas”. Dias depois do episódio nosso casal, super poderoso, viajou para ficar três semanas de férias no Rio de Janeiro. Sozinhos. Haja coração!
E de Porto Alegre mantivemos contato telefônico freqüente com a dupla em férias. Nossa esperança era que, mais atentos, nenhum deles se perdesse por lá, pois resgatá-los no Rio seria bem mais complicado! Mas, o que não faríamos por esses nossos heróis?