Recostada na antiga poltrona junto à sacada, completamente iluminada pelo sol
matinal e refrescada pela brisa primaveril, Ana Tereza abriu o grosso livro de
sempre em qualquer página, e como fazia com relativa frequência, imergiu para
as profundezas de si a conversar com os próprios pensamentos. Naqueles momentos
ninguém conseguiria saber ao certo se ela lia ou meditava, tal era o nível da
concentração.
“Teimosos pensamentos que vão e que vem e não me dão trégua,
nem um pingo de sossego. Mais uma vez estou aqui, neste incansável diálogo
monologado. Menti, eu sei e assumo: minha culpa, minha culpa, minha culpa. Mas
realmente eu não queria ter agido assim. Não aprovo as mentiras, odeio quem
vive delas. Creio ter mentido por pura sobrevivência. Ou, será que minto agora
para minimizar minhas culpas? Para esconjurá-las? Talvez. Mas que culpa tenho
eu de que a mentira por vezes é a única saída para nos salvar do desespero, da
mediocridade, da inércia? E, sonhar é mentir? Afinal, com honestidade, nem sei
bem ao certo o que é essa tão almejada verdade que persigo há anos, que se
diverte a me escapar por entre os dedos sempre que creio tê-la assegurada nas mãos. Foram infinitas as vezes que jurei pensar e falar e querer a mais
pura das verdades; para depois descobrir que eu mentia deslavadamente, mentiras
proferidas a mim mesma, levando-me a enredos e enganos, e à construção
de falsos alicerces. Céus, quanta ironia. A vida é feita de ironias, e essa tal de
verdade é uma robusta e implacável ironia. Chega até ser engraçado. Não, não
tem graça alguma, a situação é triste: eu não sei distinguir o limite entre a
verdade e a mentira. Seus líquidos se misturam e se interpenetram e se
transformam em, em quê, realmente, se transformam? Como ser sincera com quem
quer que seja se eu própria desconheço minhas verdades? Elas são tantas e
enlouquecidamente contraditórias, são tão confusas que me atordoam e quase mais
se parecem com mentiras. E mesmo assim eu as compartilho, as defendo como joias
raras e as propago ao vento. Ah, o vento! Com que prazer desfruto esse sopro de
ar no meu rosto. O vento! Aí está, o vento que me acaricia é prazer ou consolo?
Vento que me faz companhia com sua presença silenciosa, mas que me conduz ao
abandono profundo de mim, que me expõe à solidão da alma, que me provoca diante
das mais incrustadas e discutíveis verdades. Ah, vento que me dá prazer e
consolo e saudade. Vento meu, bafeja sobre mim e me cobre com um pouco da tua
realidade boa. Hum! Estou com sede. Mais uma vez a realidade impondo-se como
verdade. Ou como fuga? Tanto faz, estou com sede, somente isso importa agora.”
Da sensação de sede seguiu-se um longo suspiro, feito gemido,
liberto da escuridão dos questionamentos de Ana Tereza, devolvendo a sua atenção
ao colorido da primavera. Na copa das árvores as flores amarelas dançavam ao
embalo do vento, tendo as folhas verde-escuro como pares tremulantes. A natureza cantava e brincava com o movimento de suas sombras no
gramado. A paisagem envolveu o olhar de Ana Tereza secando a sede como
premência. Absorvida pelo cenário, ela planou as emoções sem noção de tempo até
aterrissar nas sombras do jardim. Os olhos ali parados, cravados e
enfeitiçados, num piscar se voltaram ao mundo interno. E ela retornou às elucubrações, atraída por novo ângulo do seu caleidoscópio da vida. O livro
deitado sobre o colo rolou as páginas exibindo outro ponto do texto que,
igualmente, não seria lido.
"Bela é a primavera com suas cores e sombras. Sombras que
nos seguem e perseguem e trapaceiam. Existem à custa das coisas e das luzes,
luzes que iluminam as coisas que criam seus respectivos fantasmas - as sombras.
Às vezes as sombras parecem crianças brincando livres, outras vezes elas se
parecem com seres assustadores e persecutórios nos lançando ao medo. Sombras do
pensar, sombras do amar, sombras das sombras.”
Ana Tereza fechou e apertou bem os olhos para melhor ver suas
próprias sombras.
“Carrego no coração sombras inquietas que se reinventam em
desenhos e tons. Algumas até são alegres e enfeitam, mas muitas delas são
melancólicas, vestem-se de cinza, marrom e negro. São sombras que sabem ameaçar
quando, poeirentas, se alastram e dominam ao mínimo descuido meu; quando escondem
o tempo presente de mim. Algumas das minhas sombras sabem ferir cavando buracos
fundos e sangrentos. São sombras envenenadas. Por que meus sentimentos não
conseguem se livrar dessas sombras malditas? Elas roubam minhas esperanças. Roubam-me
a vida que escasseia. Não sou amarga ou azeda ou ácida. Onde estão minhas
doçuras? Em algum lugar sei que carrego o arco-íris e as gargalhadas do mundo.
Sei que posso ser luz contagiante e me fazer em brilho. Cara ou coroa? A moeda
girou, parou, a imagem mudou: antes era cara, agora é coroa. Olha só como sou
presunçosa. Já me pus colorida sobre um palco iluminado a irradiar preciosas
emanações. A modéstia me driblou e se esquivou de mim, fugiu, se escondeu a um
canto; e as malévolas sombras evaporaram ao meu deslumbramento. Como posso
levar minhas reflexões a sério se dou a mão ao primeiro pensamento faceiro que
me cruza, e por ele me deixo conduzir? O vento soprou, as sombras se moveram e
as lágrimas pelas minhas desventuras, dores ou amarguras evaporaram. Ou foram se
derreter em alguma sombra oculta? Sim, tenho sombras, esconderijos e abismos em mim,
mas também sinto a existência das belas sombras, dos divertidos esconderijos e.
Não, os abismos não, eu tenho medo deles. De novo a sede, estou com sede. Chego
a sentir um leve mal estar. Onde está o meu chá?"
Levantou os olhos, antes estacionados nas páginas do
livro, e percebeu o copo com chá gelado sobre o pires em cima da mesa lateral.
O copo já derretia de suor. Ana Tereza nem reparou quando o trouxeram. Fechou o
livro e o colocou na mesa. Pegou o chá de camomila sem açúcar, forte e
perfumoso, e o bebeu lentamente, se deliciando, gole a gole, enquanto seguia o
voo de uma andorinha através das lentes. Devolveu o copo vazio ao pires,
procurou o relógio na parede. A hora já marcava a iminência de algum agito. Em
breve a casa se alçaria à sua efervescência. Era hora de fechar-se no
escritório para continuar os trabalhos: escrever e escrever e escrever um pouco
mais. A escrita a esperava, sedenta, pois ainda faltava o principal: o final da
história. Na sequência, a aventura maior estaria por vir, pois se
arriscara, transgredira-se. Estava ansiosamente desejosa por saber se o
público infanto-juvenil a aprovaria.
Pegou a bengala que se encontrava apoiada no braço da poltrona,
levantou-se de vagar para não perder o equilíbrio, e moveu-se cautelosa, mas
determinada, até o escritório. Era preciso tomar rumo antes que algum dos
seus (filhos, noras, netos, bisnetos, empregada e cão) quisesse zanzar em torno
dela para supri-la de atenção ao primeiro suspiro. De tarde, depois da sesta e já com o trabalho
cumprido, eles poderiam mimá-la à vontade. Ana Tereza apreciava
os momentos das histórias contadas de parte a parte, sempre tão recheadas de carinho,
enquanto aguardava a sua velhice chegar. Sem pressa.